ESPECIAL: Com sua voz forte e apurada, Rosa Reis fez de “Pajelança” um marco da música e da cultura popular do Maranhão

 

Capa de Pajelança, o disco de Rosa Reis que se transformou num clássico da MPM
Rosa Reis: artista de muito talento e sólida consciência cultural

Quando brindou o precioso acervo musical maranhense com o seu Pajelança, 23 anos atrás, Rosa Reis certamente sabia o que estava fazendo como cantora e militante cultural, mas provavelmente não tinha noção de que o seu canto e o seu disco extrapolariam as fronteiras do bom trabalho artístico para alcançar a condição de um dos marcos da Música Popular Maranhense (MPM). O disco a consolidou definitivamente como interprete, com sua voz forte, que mistura suavidade com firmeza, adaptando-se correta e perfeitamente ao reggae, ao afro-reggae, à canção pura e simples, ao samba chapado, à toada de diferentes sotaques, ao tambor de crioula e ao Cacuriá.

Rosa Reis vai dos graves aos agudos com facilidade, com potência e elasticidade vocais, para se aventurar em qualquer gênero e estilo, interpretando com a mesma facilidade tanto uma canção singela como uma toada forte. Mas o seu diferencial é o canto centrado, incisivo, suave ou agressivo quando o gênero, o ritmo e o poema exigem. Com esse arsenal de recursos, consegue dar a uma música personalidade própria, com a sua marca sonora, que é inconfundível, pois quem a ouve dificilmente esquece o que ouviu e facilmente a reconhece em outra audição. Na interpretação que dá a “Senzalas”, de Niceas Drumond e Cecílio Nena, por exemplo, Rosa Reis passa todo o sentimento contido em cada frase, dando ao belo reggae um tom de denúncia sem ranço. Em “Flor da pele”, de Zeca Baleiro, interpreta o sentido exato de cada frase, no tom melódico apropriado, sem mais nem menos. Com o mesmo talento, dá suavidade ao poema que César Teixeira musicou como um belo xote e batizou de “Estrela matutina”. Todas as faixas de Pajelança têm uma marca reconhecida e indelével da voz e da interpretação de Rosa Reis.

Com talento excepcional, alcançado pela educação vocálica recebida no Coral de São João e pela força expressiva lapidada no aprendizado da dramaturgia dos bailados da cultura popular resgatada pelo Laborarte, especialmente no viés da tradição afro, Rosa Reis dá sentido pleno às 14 faixas de Pajelança, dedicando a cada uma a medida melódica adequada, a dose rítmica certa e, principalmente, a força dramática de cada um desses poemas genialmente musicados por seus autores.

Dando expressão plena a preciosidades de César Teixeira, Josias Sobrinho, Joãozinho Ribeiro, Zeca Baleiro, Fauzi Baydoun, Escrete, Tião Carvalho, Tadeu de Obatalá, Niceas Drumond e Cecílio Nena e Dona Teté, Rosa Reis mostra toda a potência musical e discursiva do seu canto. Isso porque, demonstrando uma consciência cultural rara e absolutamente honesta, montou um disco que sintetiza sua visão e sua postura de afirmação superior diante de um mundo fortemente influenciado por uma modernidade confusa, que coloca em risco os nossos mais puros valores culturais, principalmente as manifestações de vertente popular. O disco é, portanto, resultado emblemático de um esforço nobre no sentido de valorizar o que o Maranhão tem de melhor em termos de música e expressão cultural.

Lançado a mais de duas décadas (1977), Pajelança é um desses vinhos musicais que parecem ganhar mais beleza quanto mais são ouvidos. Primeiro pela interpretação magistral e irretocável de Rosa Reis e segundo pela felicidade das faixas escolhidas, inteiramente identificadas com o cancioneiro maranhense. Tudo isso embalado por belos, perfeitos, coerentes e adequados arranjos elaborados por Jayr Torres e corretamente interpretados por uma banda competente formada basicamente pelo próprio Jayr Torres (guitarras, teclados, violão), Jonas Torres (contrabaixo), Arlindo Carvalho (percussão) e Moisés (bateria). E com algumas faixas enriquecidas coma participação especial de César Peixinho e Negreiros Xavier (pandeirões, pandeirinhos, tambor onça, matracas, etc.), Ed Santana, Jânio Padilha e Célio Muniz (metais), Mazé Veras, Salomão de Pádua e Regina (vocais), Francisco Pinheiro (clarinete) e de ninguém menos que o lendário mestre capoeirista Patinho, com o seu berimbau. A própria Rosa Reis dirigiu a execução da obra.

Pajelança é um clássico da MPM, extremamente atual e com vocação para se manter assim pelo resto dos tempos.

As faixas

1 – Jogando Caxangá é um afro-reggae de raiz de autoria de Tadeu de Obatalá, Bola de Brilhante e Carlos Gomes, que exalta a cultura afro a partir da tragédia iniciada nos navios negreiros vindos de Uganda. Rosa Reis interpreta essa faixa exibindo o peso da sua voz nas variações da melodia, alcançando ponto alto no refrão expressivo. Essa música exprime o viés afro da base cultural que embala a arte da cantora. Vale registrar o berimbau contagiante do saudoso Mestre Patinho.

2 – Carinho é fruto do que há de melhor no reggae cultivado por Fauzi Baydoun, de longe a maior expressão regueira do Maranhão. Na sua irretocável interpretação, Rosa Reis dá força à letra de Fauzi Baydoun indo dos graves aos agudos sem maior dificuldade, solfejando sem exageros, alimentando com esse cuidado o jogo de equilíbrio típico das suas interpretações. Faz de Carinho uma pedra para ouvir e, se for o caso, dançar agarradinho como manda o gênero.

3 – Flor da pele, pérola cultivada de Zeca Baleiro, ganha na interpretação de Rosa Reis uma carga dramática ímpar, que só a sua voz e o seu estilo são capazes de explorar. A cantora mostra essa força expressando sentimentos remexidos nas três partes do poema, no qual Zeca Baleiro consegue de fato provocar a sensibilidade dos inconformados e dominados pela paixão. É um dos pontos fortes do disco.

4 – Pajelança, que dá nome ao disco, é outra joia, esta em ritmo de soul, de Zeca Baleiro em parceria com Chico César e Tata Fernandes, na qual saem em busca de respostas e de identidades culturais. Rosa Reis dá a interpretação certa a cada verso, externando com clareza as inquietações contidas no poema. E o faz com voz centrada, firme, sem vacilação, tanto nas frases curtas, interrogativas, quanto nas extensões vocais. Dá um show.

5 – Cajapió é uma espécie de carimbó que lembra um baião estilizado, de autoria de Erivaldo Gomes. À essa faixa de oito versos, Rosa Reis dá uma interpretação simples e eficiente, abrindo a voz numa cadência irrepreensível.

6 – Estrela matutina é um singelo xote de autoria do mestre César Teixeira, na verdade um poema musicado, que guarda o refinamento das letras do autor, onde se encontram imagens do tipo “tu (estrela matutina) tens o doce brilho de um punhal na escuridão”. Rosa Reis alcança com exatidão e sem maiores esforços a paixão contida nos versos refinados de César Teixeira. Interpreta cada frase com o tom correto e a ênfase apropriada, dando ao xote a roupagem de uma canção de amor.

7 – Dançou é um reggae de Zeca Baleiro e Erivaldo Gomes, relatando encontros e desencontros passionais ao som do reggae. Rosa Reis mais uma vez mostra afinidade com o ritmo jamaicano, confirmando-se uma intérprete completa nessa seara. Encanta logo na abertura com um solfejo atraente, mantendo na sequência uma evolução contagiante, principalmente porque se mantém no agudo com firmeza. Uma bela exibição de potencial vocálico.

8 – Senzalas, o belo e contagiante reggae de Niceas Drumond e Cecílio Nena, pode ser encarado como o ponto alto do disco. Primeiro porque é uma pedra musical preciosa e bem lapidada, com discurso forte e variações sonoras contagiantes. Rosa Reis usa todos os seus recursos de voz para dar a dimensão exata a essa “pedra de responsa”, que reúne com perfeição um discurso forte e uma boa estrutura melódica. Chega ao ponto máximo quando diz, em primeira e segunda voz, que “o preto e o branco aflito e o bagaço de cana no litro faz a farra…” e logo em seguida dispara, com forte carga dramática, que “tem chicote na feira, chibata, e nem bom capoeira escapará traz amarras…” Uma interpretação magistral.

9 – Nós, o belo e forte samba chapado de Tião Carvalho, sucesso nacional na voz de Cássia Eller, ganha de Rosa Reis uma roupagem própria, perfeita, corretamente ritmada, com a ginga na medida certa.

10 – Boi do Anil e Cadê o Boi, duas toadas de peso saídas do rico balaio do genial Josias Sobrinho, às quais Rosa Reis dá interpretação especial. Na primeira, com sotaque de matraca, Rosa Reis canta como se estivesse declamando um poema-protesto escrito nos dias atuais. Na segunda, uma severa crítica política também muito atual em sotaque de zabumba, a cantora corresponde integralmente ao sentido da dura crítica política expressada na letra de Josias Sobrinho.

11 – Sentimento de tocador, uma bela toada de tambor de crioula de Escrete e José Raimundo Gonçalves, é interpretada por Rosa Reis sem maiores dificuldades. Ela consegue dar vazão aos bem construídos versos como se estivesse numa roda.

12 – Meu Baralho, um baralho de autoria do genial Joãozinho Ribeira, resgata um dos folguedos maranhenses. Rosa Reis interpreta a faixa com a cadência e alegria de uma manifestação de rua, dando a cada verso a graça que só uma intérprete com a seu talento e a sua consciência cultural pode dar.

13 – Cacuriá, cantiga de roda de domínio popular resgatada pela saudosa agitadora cultural Dona Teté. Rosa Reis brinca e dá vida a cada verso, num envolvimento de voz e alma, fazendo com que quem a ouve sinta a saudável pureza dessas cantigas.

14 – Rosa Reis fecha esse diamante da discografia maranhense com Boi de Piranha, uma toada-manifesto atualíssima em sotaque de matraca do mestre César Teixeira. Com a força da sua voz, com entonação perfeitamente encaixada em cada verso, ela convoca a todos para guarnicê lembrando que “pra vencer um batalhão tem de fincar o pé na terra com ferramenta na mão”, porque “aqui na terra quem não berra nada ganha”.

São Luís, 14 de Março de 2020.

Em Tempo: O registro sobre Pajelança, de Rosa Reis, é parte da pretensão do autor e editor da Coluna RepórterTempo de documentar impressões sobre discos fundamentais da Música Popular Maranhense. Já foram o publicados registros sobre Shopping Brazil, de César Teixeira (edição de 20/08/2026); Milhões de uns, de Joãozinho Ribeiro (edição 06/05/2017); Voos, de Fátima Passarinho (edição de 05/11/2017), e Apanhados geral, um, de Josias Sobrinho (edição de 20/04/2019). A partir de agora, esses registros serão publicados sempre no primeiro sábado de cada mês, ficando o próximo agendado para o dia 04/04/2020.

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