Semanas antes das eleições de 2010, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral e futuro presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Ayres Britto, fez uma visita de trabalho a São Luís. Tão logo desembarcou, revelou aos jornalistas um item especial na sua agenda após cumprir a parte formal: iria, afinal, conhecer pessoalmente o poeta Nauro Machado. Para ele, uma enciclopédia jurídica e um erudito refinado e apaixonado por poesia, aquela seria uma data de grande importância intelectual, pois iria encontrar o maranhense que na sua avaliação era um dos maiores poetas de língua portuguesa na atualidade. Impressionou o entusiasmo e a visível ansiedade com que um homem daquela estatura se referia, de maneira quase humilde, ao poeta maranhense. Ayres Britto saiu do encontro impressionado com a densidade intelectual e com a humildade de Nauro Machado.
O episódio protagonizado pelo ministro Ayres Britto dá bem a dimensão do tamanho do poeta que partiu ontem, aos 80 anos, deixando sua família, seus leitores e São Luís, sua grande paixão, privados da figura incomum que por ela transitou por década e décadas, dia e noite, numa solidão que mais tarde ele confessaria adorar, estivesse são ou embalado pelo álcool. A São Luís que amou era velha e clássica, a cidade assimétrica feita de ruas e becos, herança portuguesa, na qual se misturam harmoniosamente azulejos, pedras de cantaria, paralelepípedos e fantasmas, como aquele pedaço da Praia Grande onde está a praça que leva seu nome. Era a partir dali que Nauro enxergava o mundo, que olhava a sociedade, que mirava o homem e os sentimentos que o movem. Nunca foi à Europa para ver de perto as raízes da sua ampla e sólida cultura. Os livros, a cidade e as pessoas lhe bastaram. E não foi sem razão que viveu com a intensidade com que construiu sua obra gigantesca e avassaladora, a partir das ruas, das praças, dos bares, dos bordéis e do aconchego dos seus. Essa paixão por São Luís foi por ele declarada em novembro de 2004 em autógrafo dedicado ao autor da Coluna no lançamento de “Pão maligno com miolo de rosas”: “Ao querido jornalista Ribamar Corrêa (…) como lembrança de um poeta que vive realmente em função da sua São Luís”.
Dessa vida quase caótica, da qual muitos momentos foram comparados a infernos, como ficou registrado no documentário cinematográfico produzido pelo filho, cineasta e ídolo Frederico Machado, saíram 29 obras, todas com a mesma densidade e com a mesma visão caótica do mundo, que procurava traduzir em versos onde a angústia, a tragédia e o caos são figuras dominantes. Daí o comentário de Ferreira Gullar, colega e conterrâneo, e como ele um dos maiores da língua portuguesa: “É difícil qualificar esses poemas escritos, por assim dizer, no avesso da linguagem. Não é pela compreensão lógica que eles nos atingem, mas pelo sortilégio de um falar desconcertante e único”. E Franklin de Oliveira quis mostrar o tamanho poético de Nauro comparando-o a Sousândrade: “É Nauro (o poeta maranhense) que mantém na sua angústia e na sua tragicidade e na fremência do seu lirismo, maior aproximação com Susândrade”.
A obra de Nauro passou pelo crivo dos mais severos críticos literários do país. O poeta e ensaísta Moacir Félix escreveu que ler Nauro Machado “é ler uma significativa ferida do corpo humano – melhor diria desumano – de nossa literatura e da nossa época”. Já José Guilherme Merquior avaliou que “no sombrio expressionismo de Nauro, que lembra o de Augusto dos Anjos, a imagística se põe a serviço – para além da moldura espiritualista, de toda uma somatização da angústia”. O crítico e ensaísta Ricardo Leão, por sua vez, definiu assim a obra de Nauro Machado: “Seus vinte e nove títulos de poesia são a prova de um poeta, assim como João Cabral o fez, o de permanecer firme e fiel em sua proposta estética até que ela adquira o estado de uma gema de insuperável quilate na constante ourivesaria da palavra”.
Nauro Machado sempre fez, em vão, grande esforço para ser o homem comum, o cidadão anônimo que caminhava entre milhares na Rua Grande na vã e doce ilusão de que não era reconhecido, pois raro era o ludovicense que não o reconhecia. Tanto que nos seus “infernos” dormia na mesa do bar, no banco da praça ou na calçada e ninguém ousava tocá-lo. E não há quem tenha enxergado nele algum traço de vaidade intelectual que tenha, por exemplo, sido visto como arrogância a sua determinação de não entrar para a Academia Maranhense de Letras. Foram várias as tentativas, todas com a garantia da aclamação, todas recusadas com elegância e com a frágil promessa de pensar melhor em outras ocasiões. Tinha plena clareza do seu ofício de poeta, da complexidade dos seus escritos, mas sempre foi avesso ao formalismo, passando a impressão de que não se encaixaria em uma cadeira da Casa de Antônio Lobo.
Essa aversão a regras inibidoras de liberdade foi demonstrada de maneira enfática quando o então reitor da UFMA, Natalino Salgado, foi comunicar-lhe que o Conselho Universitário havia lhe concedido o título de Doutor Honoris Causa. Inicialmente ele reagiu recusando a láurea, tendo mudado de ideia após as ponderações de Salgado e da sua mulher, amante, amiga e companheira de todas as horas, a escritora e poeta como ele Arlete Machado. Acabou aceitando, mas com uma condição, a de que não fosse obrigado a usar beca preta nem capelo, traje que o homenageado com essa láurea é obrigado a usar. Sem saída, o reitor Natalino Salgado concordou. A solenidade ocorreu semanas depois e ele recebeu a homenagem como disse que iria, sem beca nem capelo.
Em tempos recentes, Nauro havia se recolhido, fragilizado que estava por causa dos problemas de saúde. Passou um período breve no Rio de Janeiro, cidade que amava, como se estivesse se despedindo. Antes, no dia 25 de setembro, lançou, na sua casa restaurada, no Centro da cidade, sua última obra: “O baldio som de Deus”, na qual relata a dura e angustiante luta contra o câncer. O ato teve caráter de reencontro com amigos e o livro encerra com uma espécie de despedida. Os seus dois últimos sonetos (2015 e 2016) parece transmitir essa mensagem.
O primeiro (2015) diz:
Vi tudo escuro e vítima do tú
mulo a cobrir de lodo até a virtude,
a se estender do ventre a estar com tu-
do aberto pelo verme no ataúde.
Vi a fala solta pelo verbo mudo
Como a fazer-se do nada que pude,
Trocando o a pelo u e até mesmo no u
Do último som nas mãos do alaúde.
Vi feito o ser o que poucos mais podem:
a boca em puro som, como se na ode
em minha boca saísse o som que ouço
no fim de tudo para o seu começo;
a fala eterna para quem, sem preço,
será comprado apenas como um osso.
E o segundo (2016) e último reforça a impressão de despedida:
Maldito seja eu com os meus haveres,
despojo dado por sina ruim,
a quem no jogo de humanos prazeres
nasceu mortal e por acaso em mim,
ó imortal ser imune a outros seres,
conhecedor final do que sem fim
se estende além de todos os saberes
na eternidade do último confim!
Antes quisera, cego de nascença,
saber as trevas de quem vive e pensa
para olhar-te por seus olhos mortos…
E após seguir para infinitos mundos
na eternidade dos mares mais fundos
enfim liberto dos humanos portos.
Que o homem e o poeta sigam em paz. O homem deixa uma trajetória de muitos altos e baixos, mas sem nenhum fracasso. O poeta deixa uma obra de alta e impressionante poesia, como bem definiu o poeta Carlos Drumond de Andrade sobre a arte literária de Nauro Marado, em 1990, ao ler “A rosa blindada”.
São Luís, 28 de Novembro de 2015.