Terceiro volume do projeto “Canção em Canção”, “A Dança dos Contrários” é, antes de mais nada, o disco mais “raiz” dos que vieram à tona até agora na colossal obra de Josias Sobrinho. A começar pelo título, que elege os “contrários” – adversários no mundo do bumba-boi – como pesos e contrapesos da grande ópera popular que se desenrola nas dez faixas. O volume é um justo e vibrante tributo de Josias Sobrinho aos ritmos essenciais da cultura popular do Maranhão, como os quatro sotaques do bumba-boi – matraca/pandeirão, zabumba, orquestra e costa de mão, e o tambor de crioula, agregando também o baião, que por afinidade ganhou seu lugar na cultura musical maranhense. “A Dança dos Contrários” reúne dez poemas populares musicados, elaborados alguns solitariamente e outros em parcerias ricas com o compositor Túlio Borges, o cantor e compositor Zeca Baleiro, o poeta e compositor Salgado Maranhão, o radialista e compositor Gilberto Mineiro e o também compositor Samarone Jr.. Além da música e da poesia que encantam em cada faixa, “A Dança dos Contrários” poderia ser rigidamente classificado como um disco temático, dedicado à cultura popular. Mas vai muito, muito mesmo, além disso, e ganha qualidade e dimensão excepcionais, quase que se universalizando, na robusta e preciosa embalagem harmônica dada a cada faixa pelo genial Zé Américo, que com sua visão de maestro concebeu arranjos cheios, produziu uma magistral combinação de teclas (sanfona e piano), cordas (violão e viola) e sopros (metais e flauta), além, claro, de uma cuidadosa e eficiente percussão, dando personalidade forte a cada faixa. Nesse conjunto de elementos, Josias canta de maneira enfática, inclusive quando faz dueto com os músicos Cassiano e Lucas Sobrinho, seus filhos e talentosos herdeiros musicais, e Lobato, o consagrado amo e cantador do Boi de Morros, contando também com o discreto mas belo coro feito por Lenita Pinheiro e Kátia Espíndola.
“A Dança dos Contrários”, um baião que transmite força, exatamente por conta do nome, abre o disco, seguido pelo contagiante e intenso tambor (de crioula) “Eu vou viajar”. A terceira faixa é “Maracá de Ouro”, uma comovente homenagem aos amos de “batalhões pesados” da Ilha. Na sequência vem o tambor “Onde eu vou baiar baião”, que reverencia os tambozeiros ancestrais. “Mimo do Povo” é um tributo aos “batalhões” de sotaque de orquestra da região do Munim. “Primeiro Zabumba”, como outras, é uma bela e emocionante toada que se curva ao poderoso sotaque de zabumba de Guimarães. O baião “Remake” é um poema sobre um amor atrapalhado. “Boi da Imaginação” é uma referência ao auto do bumba-boi buscando na memória os mistérios de outros tempos. A toada de orquestra “Não há coração que aguente” é um poema forte sobre a crueza da realidade. E, finalmente, a toada “Oração”, um poema com preces a São Pedro e São João em favor de quem sofre. Um dos diferenciais desse disco é que Josias Sobrinho solta a voz como fez poucas vezes.
Joia de abertura e ponto alto do disco que leva o mesmo nome, “Dança dos Contrários” é um baião “pesado” sobre a tensão entre os contrários, como acontece no bumba-boi, com a provocação e a resposta, às vezes dura, às vezes debochada. “Vê se volta e se não volta/Se não se esquece de mim/Eu sou só um passageiro cujo boi não brinca aqui”. E segue a provocação: “Pelos quartos onde passo/Nasce nos cantos bolor/Mais um pobre caco velho/Na casa do teu avô”. E amarra: “Faz só para os teus/ Deixa os outros pra lá/Tu tens pena dele/ Mas fica no teu lugar”. Versos ricos interpretados com a ênfase devida por Josias e os filhos músicos Cassiano e Lucas Sobrinho. O arranjo de Zé Américo é arrebatador, cheio, com sanfona, viola e flauta adornando o poema e trilhando soltas, mas em perfeita harmonia, conduzidas por uma percussão equilibrada de Marquinhos Carcará. Ao abrir o disco, esse baião canta avisando o que vem pela frente.
“Eu vou viajar” é um tambor de crioula conhecido, mas que nesse disco ganha um espaço e um peso bem maiores. “Eu vou viajar/Vou tocar tambor no mar”. E continua avisando que a coreira está chamando porque o “tambor não pode esperar”. E depois de afirmar que no balanço do mar é pior que guariba, “Se pega, não quer largar”, o cantador dá um fecho preciso: “Eu hoje tô no sufoco/ Querendo ver para crer/ Quem tá comigo não abera/Se aberar vai sofrer”. Normalmente suave, Josias puxa pela voz nesse tambor, embalado pelo coro formado por Lenita Pinheiro e Kátia Spíndola, e pela percussão adequada de Marquinhos Carcará. O tambor se eleva com o belo arranjo de Zé Américo, que inclui uma forte participação de sopro competente de Bira do Trambone, pouco comum ao ritmo, e pelo suporte do violão simples, mas firme, de Israel Dantas.
“Maracá de Ouro”, toada com sotaque de matraca e pandeirão é uma ode aos amos dos “batalhões” da Ilha, citando Apicum, Iguaíba, Maioba, Ribamar e Maracanã. O poema é forte, e puxado pelas matracas e pelos pandeirões, produz uma festa que faz o chão tremer. “Maracanã, balançou terreiro novo/ Canta a Ilha de novo/ Pro povão se alegrar”, no embalo de um cordão protegido na roda aberta pela burrinha. A toada cresce dentro do arranjo cheio concebido pelo gênio de Zé Américo. Nele, a viola de Israel Dantas e a irretocável e ousada sanfona do maestro mantêm um diálogo perfeito, adornado pelos rasgos de flautas e pela força de uma percussão em que Marquinhos Carcará dá dignidade ao canto.
Um dos pontos altos do disco, “Onde vou baiar baião”, um tambor forte, é uma clara reverência ao ritmo intenso e contagiante do folguedo. A toada é uma síntese magnífica do tambor de crioula. Na conversa entre coreiro e tambozeiro, o verso que traz a origem da dança: o Maranhão, onde o negro fez batuque nas horas de diversão, ou na festa de promessa, dia da libertação. E dá a receita do batuque: “Tu toca no tambor grande/E eu seguro do meião/ Ele firma o crivador/ E a coreira sai do chão”. E dá o fecho maior: “É aí que o coro apanha/ E o refrão fica bonito”. O arranjo de Zé Américo quebra a regra e adorna a toada com uma sanfona atrevida e uma base suave de cordas. Mas o adorno incomum segue inteiramente subordinado ao batuque soberano do “tambor grande”, do “meião” e do “crivador”, no caso conduzido por Marquinhos Carcará.
A toada “Mimo do Povo”, é um belo e justo tributo aos batalhões com sotaque de orquestra que saem da região do Munim para encantar a Ilha. Josias faz dueto com Lobato, o respeitado amo e cantador do Boi de Morros. A toada anuncia a chegada da festa de São João, tempo em que os cordões já estão preparados. “Se tudo der certo este ano/ O nosso novilho é de novo/A prenda mais preciosa, mais querida e formosa/ Solta o Mimo do Povo”. Esse Mino não nasceu na Ilha nem na Baixada, mas sabe bem trupiar. “Não tem sotaque zabumba/ Tampouco costa de mão/ Quando chega vem dizendo/ Eu sou do Munim, sou do Maranhão”. O arranjo de Zé Américo é o da visão de um maestro, que encaixa com perfeição o trombone como voz dominante, garantido pelo toque da viola e por um discreto piano, que além de valorizar o metal, abre caminho para a surpreendente e comovente entrada de violinos. Nada parecido até então em arranjos de toadas.
“Primeiro Zabumba” é uma toada em zabumba e conta que esse sotaque ganhou presença na Ilha pela iniciativa de “Seu Bizico”, que resolveu fazer um boi “como tinha em Guimarães”. “No sotaque de zabumba esse boi foi o primeiro/Conhecido em São Luís/ Mas nem por isso o derradeiro”. E continua contando: “A zabumba tá no julgado/ Com rigor e harmonia/ Pandeirinho penicado/ Traça a bola e ritmia/ Amo toca o maracá/Com toda sua fidalguia”. Na mesma linha, Zé Américo produziu um arranjo maior, usando a força da viola de Israel Dantas, somada às entradas da sanfona do maestro, dando vez a sons de teclados. Tudo com o suporte soberano do zabumba e do pandeirinho penicado bem cuidados por Marquinhos Carcará que dão o diferencial do sotaque de Guimarães que para o bem da Ilha encantou “Seu Bizico”.
Fruto maduro de uma parceria de Josias com Zeca Baleiro, “Remake” é um baião que faz a crônica de uma relação tumultuada entre um canastrão e uma fugitiva. É um jogo de sedução com encontros e partidas. “Vamos deixar de onda/ E de fazer de conta/Que o baião mudou” E por aí vai, até chegar ao apelo final: “Vamos deixar de briga/ Melhor sem intriga/ Sem o seu rancor/ Nesse dramalhão/ Posso ser canastrão/Mas quero o seu amor”. Zé Américo dá a roupagem adequada ao baião, com intervenções fortes e intensas da sua prodigiosa sanfona e da viola de Israel Dantas, que parecem dialogar. Isso com o suporte de uma percussão correta.
A toada “Boi da Imaginação” é um poema musicado no sotaque de matraca e pandeirão, resultado de uma parceria de Josias com o consagrado poeta Salgado Maranhão. A música canta a beleza dos adornos do boi, que tem língua de ouro e coro de estrelas, que tiram o sono de Catirina, que tem desejos, mas sabe que o “marruá” tem dono. Depois de uma trama, o poema musicado continua: “Ê boi dos chifres de fogo/ Ê boi dos dias que vão/ A vida é mais que um jogo/ Tua dança peregrina/ Teu encantado mistério/ É o sonho de Catirina”. Zé Américo concebeu um arranjo apurado para essa toada à base de viola que, juntamente com a percussão, que manteve a integridade do sotaque, dá todo o suporte para os belos versos de Josias e Salgado Maranhão.
“Não há coração que aguente”, toada de Josias em parceria com o radialista e compositor Gilberto Mineiro, fala de descompassos culturais e sociais, de dúvidas, incertezas e identidades, de uma cidade em crise, da “geografia da massa” que entra em fria, de uma toada que causa temor e fascínio, até desembocar no cruel refrão: “Não há coração que aguente/ Água quente/ Pelando o coro de tanta gente”. A toada foi embalada por Zé Américo num arranjo que reúne cordas, sopro e sanfona bem articulados, mantidos sem surpresas durante toda a longa letra e com a repetição do refrão. É arranjo cheio, com a visão ampla do maestro.
“A Dança dos Contrários” é bela e coerentemente arrematado com a toada “Oração”, sotaque de matraca e pandeirão, parceria de Josias com Samarone Jr.. Na oração São João pediu para São Pedro “que fizesse findar nossa dor”. Fala de tempos difíceis, tempos de dor. São João pede a São Pedro uma celebração “para alegrar o povo que passa sua dor no sertão”. Pede também a graça de guarnecer a toada mais bonita. E avisa a Catirina que no próximo ano estará de volta. Sempre com maestria, Zé Américo repete a bem-sucedida fórmula de embalar toada com um jogo bem armado de cordas, teclas e sopro. E foi assim que, contando com Israel Dantas, Marquinhos Carcará e Bira do Trombone fechou “A Dança dos Contrários” com chave de ouro.
Mais que um disco, “Dança dos Contrários” é um registro magnífico do rico lastro musical do Maranhão. É um disco para se ouvir sempre, até para desvendar os mistérios guardados nas entranhas dos poemas que viraram canções.
Em Tempo: Com “A Dança dos Contrários”, Repórter Tempo encerra essa bendita trindade do cancioneiro maranhense, aplaudindo os artistas da música e os parceiros (Governo do Estado e Potiguar) envolvidos no ousado e necessário projeto Canção e Canção, concebido e liderado por Josias Sobrinho.
São Luís, 20 de Novembro de 2023.