ESPECIAL: Em “Eu tive um sonho”, Josias Sobrinho canta sonhos mágicos que fogem dos guetos e ganham a realidade

Capa de “Eu tive um Sonho”, parceria de Josias Sobrinho
com o músico e arranjador Israel Dantas

“Eu tive um sonho”, o 2º volume do colossal projeto “Canção em Canção” é o que se pode classificar como um disco definitivo e destinado a ser icônico pela qualidade superior das 10 músicas magistrais de Josias Sobrinho, algumas esculpidas com parceiro de alto quilate, e pela genial e competente embalagem de cordas – violão, viola, guitarra – de Israel Dantas, autor e executor dos arranjos, dos quais participam aqui e ali a sanfona irretocável de Rui Mário, o violoncelo de Jorlyelson e a percussão competente de Luiz Cláudio. Aberto por um baião, ritmo caro ao autor, o disco encanta já na primeira audição, virtude típica de uma obra apurada, daquelas que não exigem esforços para compreensão e que cativam ao primeiro toque. À medida que as faixas evoluem, o ouvinte vai criando intimidade com cada uma delas, e descobrindo um roteiro musical que prende pelo encantamento. Literalmente, porque parece uma versão musicada de um livro de contos surrealistas de Garcia Marques ambientados no Maranhão. Isso porque nas músicas está um Josias Sobrinho maduro e determinado a fugir das amarras dos guetos, para levar sua magia ao mundo pela via de uma música comovente, lastreada por uma  poesia refinada.

Perfeitamente casados, as letras, as melodias e os ritmos de “Ê, vem comigo”, “Vedete”, “Ave de agouro”, “A briga do cachorro com a onça”, “O Mágico do Mundo”, “Eu tive um sonho”, “Balada Morricone”, “Descascando Ovo”, “Boi de Quarentena” e “Um morto vivo” remetem o ouvinte a um mundo dominado pelo realismo fantástico, mas sem escapar da realidade, numa relação que só existe nas tramas da magia. Cada faixa guarda um recado lembrando o confronto entre a plenitude da vida e do amor, e com a crueza dos contrastes do claro/escuro, vida/morte/ ser/não ser/ vai/não vai. Tudo tornado mais contagiante pela beleza dos acordes e dos solos das cordas dos arranjos do mestre Israel Dantas. E, claro, pelo bom gosto das participações especiais de Zeca Baleiro, Aziz Júnior e Gaby Marques.

Tudo começa pelo baião “Ê, vem comigo”, cantado em dueto por Josias Sobrinho e Zeca Baleiro e que sugere um chamamento ao Maranhão, cantando e desviando do vazio, que a vida segue em paz. A embalagem de cordas feita por Israel Dantas é genial, em sintonia aguda com os rasgos da sanfona de Rui Mário e uma bem cadenciada percussão. Uma joia para ser eternizada.  

Em “Vedete”, que Josias Sobrinho interpreta com Aziz Júnior, o compositor fala do jogo do amor nos mais diferentes vieses, e alerta para as ciladas, o preço e as vantagens do amor, que no começo não tem preço, e é só pelo verso que se ama tão fácil, concluindo que “só no gozo o amor é gostoso”. O arranjo de Israel Dantas é arrojado, casando a viola refinada com a sanfona intensa de Rui Mário, ao que acrescenta intervenções bem dosadas de flauta.

“Ave de agouro”, parceria de Josias com Túlio Borges, é uma balada suave, mas de elevada qualidade. O compositor canta: “O vento frio veio me acordar/ Nem temporal passou, nem quer passar” e depois de longo relato, amarra: “Ouvi dizer que esse perrengue vai passar/ Seja do jeito que for/ Seja do jeito que há/ Seja do jeito que dá”. que ganha volume pela variada e consistente embalagem de cordas, como um diálogo de dois violões, conduzidos por Israel Dantas.

“A briga do cachorro com a onça” é uma mistura de lelê – um ritmo ancestral da Região do Munim – com cacuriá sobre uma espécie de desafio surreal, com tiradas geniais de parte a parte, ricamente interpretado por Josias e Zeca Baleiro. O cachorro ataca: “Tú és flor que não se cheira? És rainha da besteiras/ Tu não tem nada de gente”. E onça reage: “Tu não nasceu, foi vomitado/ Tu so tem é rebolado/ Teu negócio é pra esse chão”. Além da viola perfeita da sua lavra e da sanfona de Rui Mário, o arranjo de Israel Dantas inclui um poderoso e envolvente ritmo de caixas. 

Um dos pontos altos do disco, a canção maior “O Mágico do Mundo”, uma parceria superior com o celebrado e genial compositor Sérgio Habibe, em que pregam que “cada caminho é um céu”, e perguntam “Pra onde é que tu vais?”, reforçando a genialidade de Josias Sobrinho como letrista, principalmente quando o argumento é o realismo mágico. O arranjo de cordas de Israel Dantas é superior, iniciando com um toque que lembra uma guitarra flamenca, que logo casa com uma viola que sustenta o conjunto, tornando a música um item destacado desse volume.

É o caso também do xote “Eu tenho um sonho”, que dá nome ao disco, no qual Josias Sobrinho brinca com as palavras, rascunhando o verso e o reverso da realidade, dizendo que no sonho não se “via no espelho” e “não sabia acordar”, mais ainda: “andava sem passar”/ “parava sem ficar/ali ou em qualquer lugar”. O surrealismo na sua mais pura essência. Nesse arranjo, Israel Dantas mantém a base de cordas, mas abre grande espaço para a precisa sanfona de Rui Mário, que faz sua parte em casamento perfeito.

A sexta faixa, “Balada Morricone”, parceria com Túlio Borges, Josias surpreende ao sair dos xotes, baiões, toadas, baladas e, surpresa das surpresas, incursiona pela bossa nova. Canta “Alma de minhalma /É um ser paralelo/Que as águas negras/De onde eu trafego/ Não cabe ao nobre/Nem ao singelo/Ou tampouco ao belo/Ou parabelo”. É como estar assistindo a um pôr de sol no Caolho numa tarde de outubro. O arranjo de Israel Dantas casa sem angústia violão e piano, ambos sustentados por um poderoso violoncelo conduzido por Jorlyenson.  

Também desguiada do roteiro, a faixa “Descascando ovo” é um vigoroso ensaio jazístico sem letra elaborado por Josias e que coloca em situação de desafio harmônico a bela e disciplinada voz de Gaby Marques e o embalo rico e virtuoso da guitarra de Israel Dantas. É um diálogo tenso e desafiador entre voz e cordas, que culmina na construção de uma joia musical.

“Boi de Quarentena” é a única toada de “Eu tive um sonho”, fruto icônico de uma parceria de Josias com Joãozinho Ribeiro, Chico Saldanha e César Teixeira. E como não poderia deixar de ser, eles, com a autoridade de quem sabe o que faz, pedem a proteção de São João aos bois diversos, rogando para que o santo proteja e guarde a cultura popular. Entre outros apelos, pede: “Ó meu São João, proteja e guarde o novilho, de peste, tortura e relho”. Levada num sotaque leve de matracas, a toada é ricamente adornada por um suporte de cordas alinhavado por Israel Dantas e revestido pelos rasgos da sanfona de Rui Mário, sustentados por uma percussão sem alarde.

Josias Sobrinho fecha “Eu tive um sonho” com a canção “Um morto vivo”, rebento de parceria com o jornalista Sérgio Catelani, que relata uma desventura amorosa na qual o sujeito banido se compara a cachorro sem latido e a resto de comida. O arranjo de Israel Dantas repete a fórmula perfeita de harmonizar o rico trinado das suas cordas com a beleza saída dos teclados da sanfona de Rui Mário.

É um disco contagiado pela magia, literalmente, e para ser eternizado no reino do encantamento. Sem nenhum favor.

Em Tempo: Na edição desta segunda-feira (20/11), a Coluna encerra a trilogia com o monumental “A Dança dos Contrários”, parceria de Josias com Zé Américo.

São Luís, 19 de Novembro de 2023.

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