Cerca de um ano e meio atrás Josias Sobrinho contou, numa conversa com ares de segredo, que estava mergulhado no ambicioso projeto de tirar do baú uma centena de músicas compostas ao longo do seu meio século de criação, com a desafiadora tarefa de perpetua-las em uma dezena de discos, no roteiro de um projeto gigante batizado Canção em Canção, que se somariam à sua vasta e consagrada obra conhecida. Quem o conhece foi contagiado por uma tensa expectativa, e quem não o conhece, duvidou. Surgiram fatalmente duas indagações. Tal projeto, delineado na parceria arte-empresa (Potiguar), costurada nas regras da Lei de Incentivo à Cultura, seria viável? E o que sairia do tal baú? Ninguém perdeu por esperar. Menos de um ano depois, nada menos que seis volumes, ou seja, seis dezenas de músicas, já chegaram às plataformas sonoras da internet, mais duas devem desembarcar até o Natal, e duas ficarão para um pouco depois – que Josias Sobrinho é de boa cepa, mas não é de ferro.
Os três primeiros volumes – “Vida Bagaço”, “Eu tive um Sonho” e “A Dança dos Contrários” – compensaram plenamente a espera. Neles Josias Sobrinho se mostrou o mesmo gênio de sempre, só que agora muito mais consolidado como um compositor de talento sem medida, capaz de produzir uma obra monumental sem fugir do seu lastro que são as raízes culturais da Música Popular Maranhense, mas sem se repetir, tornando cada música um traço marcante. As 10 faixas de cada um desses volumes são ímpares, casamentos plenos entre letras e música, e também pelos arranjos que as embalaram. “Vida Bagaço” é uma parceria com o talento desmedido do sanfoneiro Rui Mário, arranjador certeiro como as notas do seu fole. “Eu tive um Sonho” é o resultado de mágica poesia musicada com o gênio superior do craque das cordas Israel Dantas, arranjador sem amarras, que não teme arriscar. E “A Dança dos Contrários” é uma sequência de toadas que vieram ao mundo na embalagem harmônica exuberante que nasceu de uma aliança de Josias Sobrinho com a experiência, a sensibilidade e a maestria do mestre José Américo, o grande gênio musical maranhense no plano dos arranjos. São três obras-primas aparentemente distantes, mas que se completam quase que como um roteiro de vida do compositor. São obras irretocáveis.
Nesta edição especial, a Coluna o primeiro rebento genial. Na edição de amanhã, domingo (19/11), a Coluna publicará “Eu tive um Sonho”, e na de segunda-feira (20/11), “A Dança dos Contrários”.
“Vida Bagaço”: um tributo de Josias ao conjunto Rabo de Vaca e o resgate de um tempo que não volta
“Vida Bagaço”, uma homenagem de Josias Sobrinho ao conjunto “Rabo de Vaca”, motor inicial da sua carreira nos anos de 1970, quando ele e outros gênios atrevidos deram forma e conteúdo à essência musical do Maranhão. É um disco solo, que Josias gravou sem parceiro de composição nem de interpretação. O volume reúne composições nas quais Josias Sobrinho busca reminiscência da sua infância na acolhedora Cajari. O abre é “Boi de Pireli”, uma crônica em verso sobre um boi louco. Ao que segue o baião “Naszora” cuja letra tem é um protesto da sobrevida pela “graça de Deus”. Então surge o baião “Bote terra”, uma metralha na dureza da vida real na busca do “pão de cada dia”. “O dia da Caça” relata outra situação dramática e metafórica que é a noite em que onça invade curral. O galope “Vida Bagaço” – não inédita – é o ponto alto do disco, a grande homenagem ao conjunto Rabo de Vaca, no qual iniciou sua trajetória musical. Na sequência vem o baião “Noves Fora”, também uma crônica de reminiscências de rua com um cego inteligente. “O Sonho” é uma emblemática metáfora no ritmo de samba-choro. “Doutor Pai Francisco” é uma toada genial, fruto de uma grande parceria. “Lancha Nova” é um forte poema musicado sobre o sonho de partida. E “Estrupício” é o retrato do que toda criança foi ou gostaria de ser. As dez faixas são ricamente adornadas pelos arranjos precisos e tocantes de Rui Mário, com a presença dominante da sanfona, e tendo como suporte as cordas envolventes de Israel Dantas.
O disco abre com a toada de matraca “Boi de Pireli”, a crônica de um boi louco, que “matou muito vaqueiro”. A loucura do boi vira notícia, mas no final vem o apelo dramático para poupa-lo, com a alegação de que “ele é cria de Maria e Santo Antônio lhe benzeu”. A interpretação de Josias Sobrinho, com sua voz atípica, única, e que dá a dimensão exata de cada verso. O arranjo de Rui Mário casa sua sanfona com o violão de Israel Dantas e a percussão de Luiz Cláudio. Chama a atenção a bela e desconcertante introdução em violão dissonante, que logo se casa com a sanfona e um piano numa toada lenta, mas com intensa força dramática.
“Naszora” é uma espécie de ladainha em forma de baião em que o cristão ao mesmo tempo resignado e inconformado segue em frente “com a graça de Deus” “mendigando piedade”, “revidando amizade” e “rebuscando piedade”, “nas horas de eternidade e eterna idade; de falsidade e da falsa idade, e da infinidade e da finda idade”. A letra com seus refrãos segue com um bem armado trocadilho, como em toda ladainha que se preza. O arranjo de Rui Mário começa com um arrebatador solo de viola de Israel Dantas, que casa na sequência com a sanfona do arranjador, com o embalo preciso de percussão eficiente.
“Bote terra” é uma espécie de baião compassado em que o compositor faz dura crítica às dificuldades da vida cotidiana de um brasileiro comum e indignado, levando a reclamar do preço do arroz, do desgosto do pão e a estimular seu compadre a botar terra e rejeitar esse quilo de feijão. Isso num “paraíso, doutor, com um pé no caixão”, no qual a liberdade pouco vale numa situação de servidão”. Rui Mário abre o arranjo com um piano grave, salpicado por notas agudas de sanfona e com o adereço de uma viola discreta, mas forte, de Israel Dantas. O tom de protesto fica mais forte com a brusca interrupção.
“O Dia da Caça” é um xote no qual Josias recorda o drama que contagiava a todos quando onça invadia currais para matar a fome. Quando a onça invade o curral, “o sangue escorre no quintal”. “A onça esturra, o gado berra, e o temor revira a terra, a noite inteira no curral”. E a reação vem com “baladeira, faca, foice, canivete e a ponta do meu punhal”. O belo arranjo de Rui Mário é um casamento das cordas de Israel Dantas e a sua sanfona, que dão alegria ao xote, que é bem ritmado pela percussão competente.
“Vida Bagaço”, que é o grande tributo ao Rabo de Vaca, não é inédita, mas a sua importância torna esse galope o ponto alto do disco pela força da sua poesia. A letra é um jogo de frases com amor e desamor, espera, tristeza e a expectativa “De que chegue o fim dessa noite, que a partir de hoje se possa cantar”. E “Quando acabar quarentena, virá uma novena, meu Deus, que será?”, numa clara referência à ditadura repressora dos anos 70. E garante que cantando faz “o hotel da tristeza fechar”. Um galope clássico embalado por um arranjo absolutamente coerente de Rui Mário, à base de sanfona incrivelmente variada, um suporte de violão fazendo o bordão, rasgos de flauta e uma zabumba segura. Uma embalagem perfeita para uma faixa icônica.
Em “Noves fora” Josias compôs um baião da gema, que ritima uma crônica de um cego de rua que parece enxergar mais que todos os presentes. “Disse o cego isso é besteira, meu menino conte outra, vamos prestar atenção”, faz desafios e diz que “Toda questão minha se resolve nove mais nove, noves fora nada é”. O arranjo de Rui Mário é preciso. Começa com um toque de viola nordestina de Israel Dantas que logo é acompanhado do tremulado da sanfona numa sequência comovente. É um casamento perfeito para um baião que conta história de cego que teve um grande amor.
“O Sonho” é um samba-choro clássico, com a magistral sequência do gênero, no qual Josias ironiza uma prisão política na qual tem um cão como carcereiro. Só que nela ele pode ir à praia, com calção furado, vigiado pelo cão, mas não encontra ninguém e outras coisas mais. O samba-choro é belamente embalado pela base da sanfona de Rui Mário, com a baixaria precisa do violão de seis cordas de Israel Dantas, que nada deixa a dever a um sete cordas.
“Doutor Pai Francisco” é toada de matracas na qual Josias traça com perfeição a personalidade tortuosa de Pai Francisco, o personagem central do bumba-meu-boi maranhense. Na toada, é dito a um doente com “ a faca na goela, um ardor na titela, de doer, de matar” que se Pai Francisco conhecesse a medicina, receitava na surdinha gasolina e melhoral…, vaselina e carnaval”. O arranjo bem montado mais à base do ritmo do que de harmonia, é garantido pala sanfona de Rui Mário, traços de violão, rasgos de flauta e uma boa percussão numa toada de matraca.
“Lancha nova” é uma canção em ritmo de coco na qual Josias lembra o sonho de infância de sair do torrão – no caso Cajari -, e ganhar o mundo. A lancha era a porta de entrada para a vida além do ninho. Embarcar na lancha o levaria a “cantar esse meu canto pras bandas que eu chegar. Vou dizer em outras terras, como é o lado de cá”. O próprio disco “Vida Bagaço” é um relato desse mundo que ficou, mas que nunca foi esquecido. O competente arranjo de Rui Mário começa com uma bela base de cordas saída do violão de Israel Dantas. É um dos pontos altos do disco, principalmente pela força simbólica da lancha, que durante muito tempo foi a ponte flutuante entre a Baixada e o Litoral Norte do Maranhão com o resto do mundo.
“Estrupício” é um reggae adornado por sanfona, piano, violão capitaneados por contrabaixo padrão do ritmo jamaicano. É uma sátira sobre um rebento que não se emenda. “Nasceu fruto da tua carne, bafo da tua espécie”, “querendo briga, não se cura nem com prece”. Encerra com um interessante mix de ritmos, mas sem manchar o lastro do reggae. Bom arranjo de Rui Mário.
Primeiro rebento do ousado projeto de Josias Sobrinho, “Vida Bagaço” é um disco para se ouvir e mergulhar na memória.
São Luís, 18 de Novembro de 2023.