Poucos discos de Música Popular Brasileira (MPB) nas últimas décadas reúnem composições tão especiais como Shopping Brazil, que simboliza a Música Popular Maranhense (MPM). Obra do compositor e militante cultural e político César Teixeira, autor de mais de 100 composições, todas recheadas com melodias de altíssimo nível de elaboração e elevado refinamento poético, o disco é um marco, apesar de ignorado pelos grandes meios de informação e divulgação. Provavelmente por ser uma obra que foge aos padrões do conformismo cultural e político – foram apenas mil cópias feitas no maior sufoco em 2002. Como diz o próprio César num texto de apresentação, Shopping Brazil não é um disco elaborado como tal para satisfazer as exigências do mercado – ele nunca se submeteu a elas -, mas um ajuntamento cuidadoso de “retalhos” que expressam fielmente os diversos momentos da sua trajetória de compositor.
Shopping Brasil, que tem como carro-chefe a canção que lhe dá o nome, é uma maravilha da MPM, a começar pelo fato de que é o único disco de César Teixeira, dono de dezenas de composições gravadas por diversos intérpretes maranhenses e nacionais. O disco reúne clássicos como os baiões “Bandeira de Aço”, “Xaveco” e “Namorada do Cangaço”, e a canção “Flor do Mal”. Abriga também os sambas “Ray-Ban” e “Vestindo a Zebra” e os blues “Met(amor)fose” e “As bruxas também amam”, o coco “Parangolé” e toada de zabumba “Mutuca”. E adendos preciosos e agradáveis como a participação de Dona Elza – de Tutóia, de Mestre Felipe e de Dona Teté e Rosa Reis, que trazem à tona maravilhas do cancioneiro popular.
É verdade que o disco não abriga jóias musicais já eternizadas, como a canção de protesto “Oração Latina”, que ainda hoje é usada como estímulo às mobilizações políticas e sociais, nem a toada “Boi da Lua”, também um símbolo das festas juninas, entre outras obras de indiscutível envergadura, como sambas, sambas-enredo, toadas e canções que trazem a marca do gênio musical de César Teixeira. Mas é um registro grandioso, que ganha dimensão especial por ser eternizado na sua própria voz, interpretado como ele sente cada uma das 11 faixas de sua autoria. Em sua interpretação de Shopping Brazil, César Teixeira dá o tom de indignação na medida que provavelmente outro intérprete não daria, o mesmo acontecendo com todas as faixas. É esse o diferencial do disco que a grande mídia ignorou, mas que permanece vivo nas mãos de poucos e na memória de muitos como uma obra de primeira grandeza.
Para realizá-lo, César se aliou ao icônico Laborarte e ao Instituto maria Aragão, contando com a ajuda produtiva de Tatiana Ramos, do imortal Nelson Brito e Rosa Reis. O fotógrafo Márcio Vasconcelos fez as fotos e concebeu o projeto gráfico junto com José Antonio Serra. E contou com a cumplicidade de Helena Heluy, Joãozinho Ribeiro, Dimas Salustiano, José Carlos Madeira, Haroldo Saboia e Ironildes Vanderlei.
As faixas
“Shopping Brazil” é um manifesto. Embalada com uma espécie de afro-reggae que tem por base forte percussão que tira som de lata, a canção traduz, numa poesia ao mesmo tempo forte e crua, o agressivo quadro das desigualdades no País, e grita contra a globalização da miséria nacional. Lata e lixo simbolizam fortemente essa relação, que é tratada com dureza, mas também com ironia, deboche e ternura, que vão desembocar numa verdade chocante: a fome é autodidata para quem já nasceu sem gravata. Cada verso de Shopping Brazil – ostensivamente escrito com Z – é uma pancada vigorosa na cruel realidade social da maioria dos brasileiros e na distorcida e viciada estrutura política que dá as cartas no País. O arranjo de César Teixeira, auxiliado por Murilo Rego e Luiz Cláudio, tem como eixo central a Banda Projeto Som da Lata, enriquecido pelo afinado coral formado por Cláudio Pinheiro, Mazé Veras e Valdedeth. O próprio César Teixeira não deixa dúvida do viés de protesto da canção: “As latas denunciam com brilho a dor da globalização”. Uma visão na qual se encaixa perfeitamente a realidade social, econômica e política de São Luís.
“Ray-Ban” é um samba cadenciado em que César Teixeira avança na crítica política e nas distorções sociais, agora com uma letra pontilhada de deboche refinado. Tirar os óculos escuros é mais que uma sugestão, é um desafio ao poder distante e insensível à realidade social. Sem os óculos, essa realidade só será compreendida lambendo “o prato vazio sobre a mesa”. E aí a verdade vem à tona, principalmente por meio da vaidade, só podendo enxergar a realidade os que apagam as luzes da sociedade. César Teixeira invoca seu passado moleque e candidato a marginal registrando a existência do Cine Rialto, uma sala de cinema que existiu na Rua do Passeio até o início dos anos 70, lembrando que foi preso por malandragem, foi vendedor na Ponta d`Areia, e deu uma de cego na igreja e vendeu seu Ray-Ban no dia do eclipse. Vale destacar nessa faixa o refinado violão de Joao Pedro Borges (Sinhô), o magistral violão de sete cordas de Gordo Elinaldo e o Cavaquinho de Paulo Trabulsi.
“Met(amor)fose” é um blue que vai fundo na sua ampla base cultural e literária do compositor. Com refinamento excepcional ele tenta explicar a sua transformação trazendo à tona a angustiante metamorfose kafiana. Foi buscar inspiração na controvertida e espetacular trajetória do poeta francês Rimbaud, que influenciou também na música, mas se juntou a traficantes de armas da Europa para a África, especialmente à Abissínia, hoje Etiópia. Afirmando estar “morando na filosofia”, trazendo a célebre relação entre amor e dor na poesia, foi buscar no incêndio de Alexandria, que consumiu sua grandiosa biblioteca, a evolução universal do saber. Revelando estar no “barco ébrio dos aflitos”, vai buscar em Fernando Pessoa a consciência de que não consegue ser um poeta que finge que é dor a dor que deveras sente por esse estranho amor. A metamorfose de César Teixeira ganha uma dimensão ainda maior pelo trompete de Daniel Cavalcante e pela guitarra de Athos Lima, incluindo também o sutil pandeiro de Luiz Cláudio.
“Bandeira de Aço” dispensa apresentação. O baião traduz, sem mais nem menos, o César Teixeira contestador e inconformado dos meados dos anos 70, em plena ditadura. É o artista militante, o poeta que começava a chegar à maturidade e que expressava a sua tumultuada relação com o mundo, com os valores em voga naquele momento cinzento da vida brasileira. Mas a visão do poeta rebelde e inconformado foi tão larga que o baião é hoje tão atual quanto no singular contexto em que foi composto. Não há como não registrar o arranjo adequado e interpretado fielmente pelas cordas de Luiz Júnior, o acordeon de Rui Mário, a percussão de Luiz Cláudio e o vocal de Cláudio Pinheiro, Mazé Veras e Valdedeth. Bandeira de Aço está consagrada como um dos clássicos da obra de César e da música maranhense.
“Flor do Mal” também dispensa apresentação, por estar, como ‘’Bandeira de Aço”, consagrada como um clássico da música maranhense em todos os tempos. Sua relação com a “flor do mal” tem viés político e social muito forte, que ganha expressão máxima quando, depois de sentir o gosto que a morte tem, ele avisa que quando os espíritos voltarem da guerra, encherá os olhos da mais suja terra, ferrará a mula rumo a Portugal. Ele e sua bananeira assumindo a condição de bandeiras do mal. O que chama a atenção nessa versão de “Flor do Mal” é o arranjo espetacular feito pelo violonista João Pedro Borges, o Sinhô. Os acordes do violoncelo de Kátia Salomão, reforçados pelas refinadas cordas de Sinhô, dão à canção-mestra um grande peso dramático. Poucas vezes um arranjo ousado se revelou tão adequado e inovador como o que embala esse outro clássico de César Teixeira.
“Vestindo a zebra” é mais um samba cadenciado, que dá vida a uma crônica em que narra um domingo de João, brasileiro como milhões, que veste sua camisa listrada e vai ao futebol. Apaixonado, assiste à derrota do seu time e se desespera, enche a cara, briga. Perde a camisa, perde a dignidade. Tudo por que não tem dinheiro. Essa crônica de uma pequena-grande tragédia brasileira é embalada por arranjo do próprio autor, que inclue refinados acordes do sempre irretocável violão de Pipiu e do solo de clarinete de Celso Bastos.
“As bruxas também amam” traz uma mistura genial de crônica e poema, que torna difícil saber onde começa a primeira e termina o segundo, mas expressa, com rara beleza, a mais intensa mistura de paixão e sexo, na qual, como imã, os amantes se puxam. Nessa relação está o mistério das noites de sexta-feira 13, que se completa com vinho e cama, num clima forjado com imagens fantásticas do tipo “mordo, sob a luz das velas, teu pescoço de ave rara”, para desabafar afirmando que só sabe que está alegre quando chora. A faixa tem arranjo de César Teixeira e Murilo Rêgo, que faz um belo solo de sax.
“Xaveco” é um baião arrastado que vai fundo nas expressões populares como Hem-hem, hum-hum, xaveco, teco, nheco-nheco e tererê, que se acomodam, rimando, numa composição com pouco mais de uma dezena de frases. Nela está a facilidade com que o compositor utiliza as variações da linguagem popular nas formas cultas para mandar seus recados. O arranjo destaca o acordeon de Rui Mário, o violão de Jair Torres e a flauta de Célio Muniz e o coro de Cláudio Pinheiro, Mazé Veras e Valdedeth.
“Parangolé” é um coco em que César Teixeira se supera na pintura verbal dos traços culturais do interior da Ilha de Upaon Açu. É quase um elogio do coco fruta e do coco dança, que se misturam nas suas diversas versões. Em meio à fantasia do coco, um grito de alerta lembrando que de tanto quebrar “o coco, não sobrou machado em pé”. E relata, como um cronista atento, o que acontece quando numa dança de coco alguém passa dos limites. O arranjo destaca o banjo de Gordo Elinaldo, o acordeon de Rui Mário, a percussão de Luiz Cláudio e o coro de Cláudio Pinheiro, Mazé Veras e Vandedeth.
“Mutuca” pode ser definida como uma rara e justa homenagem ao sotaque de zabumba, para muitos o mais contagiante do bumba-meu-boi do Maranhão. César Teixeira resume genialmente o auto do boi trazendo a mutuca – mulher de brincante que acompanha as apresentações -, um elemento periférico, para o epicentro do auto, jogando-lhe nos ombros a responsabilidade de responder sobre o sumiço do boi. César quebra a formalidade do discurso com a corruptela Quedê e o aboio Equiô para dar à toada um clima de terreiro. O arranjo destaca a percussão de Josemar e o vocal de Cláudio Pinheiro, Mazé Veras e Valdedeth.
“Namorada do cangaço” é o ponto de amarração do disco. No baião político, o compositor-poeta trouxe o cangaço para o final do século passado como caminho para enfrentar a ditadura, as amarras políticas e as injustiças sociais. Mas mesmo falando da caçada policial aos que contestam a ordem e afirmando que vai usar metralhadora, o faz com a ternura dos que partem para a guerra deixando um amor. E quebra a dureza do protesto e da indignação prometendo voltar para casa “cantando um bolero de Waldick Soriano”. O cangaceiro aí pode ser o João Brasileiro que enfrenta a barra das desigualdades, podendo ser também o contestador ou, além dele, o revolucionário integral. O arranjo é consagrado no acordeon de Rui Mário, na intensa viola de 10 cordas de Luiz Júnior e na percussão vigorosa de Luiz Cláudio.
Shopping Brazil é genialmente arrematado por três participações especiais, que expressam fielmente a cultura musical popular do Maranhão. A primeira são dois versos do coco “Areia branca”, cantados por Dona Elza – de Tutóia. A segunda são as frases iniciais e o refrão de uma toada de tambor de crioula interpretados por Mestre Felipe. E a terceira é a “Ladainha de Nossa Senhora”, música do compositor erudito Antonio Rayol e letra de domínio popular, interpretada por Dona Teté e Rosa Reis, ao som da caixa da cantora líder do Laborarte.
É um disco para se ter e ouvir sempre.
São Luís, 19 de Agosto de 2016.
Agradeço por essa belas e enxutas traduções. Funcionam como dicas para quem ainda não ouviu o disco. Só quem tem alma de artista poderia simplificar a esfinge que aparentemente existe em cada música.
Fui movido por dois sentimentos. Um de justiça e outro de compromisso cultural. O de justiça porque você, por sua obra, luta e coerência, merece o registro. O compromisso cultural foi tentar dar ao disco a sua verdadeira dimensão no painel da cultura maranhense.