(Impressões de um jornalista que gosta de poesia, mas não é versado em poética, e que, mesmo tendo a palavra como matéria-prima, nunca se atreveu nem se atreverá a escrever um verso)
São Luís, essa magnífica singularidade urbana, historicamente incomum e culturalmente ímpar, já foi cantada em quase todos os seus vieses em versos magistrais, esculpidos por poetas de grandeza imensurável. Sua arquitetura incomparável, sua geografia sem par, sua cultura sincrética, sua miscigenação caudalosa, seu caldeirão religioso – com domínio do catolicismo romano na superfície e dos deuses afro dando as cartas na base -, seus encantos e sua trajetória estão eternizados em poemas definitivos e irretocáveis, levando muitos a avaliar que o manancial temático da musa especial e pouco fiel caminhava para o esgotamento. Nada disso. Como um vulcão em erupção, o poeta Luís Augusto Cassas desmancha, radical e implacavelmente, essa tendência com Quatrocentona: Código de Posturas & Imposturas Líricas da Cidade de São Luís, sua obra mais recente, lançada em fevereiro, mostrando a cidade dele pela beleza e pela crueza das suas entranhas. Os 90 poemas reunidos – muitos já publicados em 10 dos 20 títulos hoje reunidos na antologia “A poesia sou Eu”, e muitos inéditos – falam das suas mulheres, seus cantores, suas prostitutas, seus heróis não cantados, sua grandeza, seus amores, seus conflitos, seus temores, seus tumores, suas culpas, suas conquistas, seus reveses, sua torpeza e o peso quase insuportável de ser única, transitando por praças, becos e igrejas.
A São Luís de Cassas é superior, ativa e dançante na sua existência cotidiana, mas é também triste e alegre, sombria e solar, velha e nova, onde tudo tem um contraponto ameaçador, o que a torna angustiada com a sobrevivência e o porvir. E por isso mesmo é tratada com carinho, paixão, ironia, crítica, tornando cada poema uma esfinge a ser decifrada. Tanto que, ao mesmo tempo em que a revela, Cassas a procura, como o argonauta Odisseu, singrando mares revoltos em busca de sua Ítaca, como bem aludiu o poeta Rossini Corrêa na genial apresentação do livro.
Fruto da poesia madura, apurada e singular de Cassas, Quatrocentona: Código de Posturas & Imposturas Líricas da Cidade de São Luís revela e desnuda a cidade pelo seu viés mais rico e controverso: sua gente, com seus movimentos, sua força, suas fraquezas e seus fantasmas. O lirismo do poeta não desenha a beleza lusa dos casarões coloniais, não traz um só verso sobre os azulejos que os cobre, ignora a existência das pedras de cantaria e não traduz o que há de memória no silêncio dos telhados nem aponta beleza nos trapiches. Mas cada verso faz o leitor lembrar desses traços da cidade. Nas suas 200 páginas, a única referência arquitetônica está num único verso que fala, numa abordagem universal, da relação da sacada com o mar. Além de praças, feiras e igrejas, sua referência urbana são os paralelepípedos, vistos como “diamantes de multidões”, “testemunhas de destroços” e “com cara de munição”. São as pedras da cidade-fantasma na qual busca o bonde, “Bicho de ferro surreal” que está “em mim”. Nada sobre as formas e as cores da cidade. Tudo sobre sua gente, seus sábios e seus loucos, seus humores, suas dores, seus ardores, seus temores e seus tumores. Uma cidade viva, alegre e cantante, mas também triste e contida, com saúde e chagas e que avança e decai.
O livro está dividido em oito blocos: “A Cidade Aberta”, a “Cidade Relembrada”, “A Cidade no Varejo & Atacado”, “A Cidade e a Alma Ensolarada”, “A Cidade Transfigurada: o Véu & a Máscara”, “A Cidade Dançante”, “O Dono do Mar”, “A Cidade e o Fantasma Romântico” e “O Renascimento da Cidade”. Cada bloco explora um viés da São Luís singular. Cada bloco explora um universo dessa São Luís humana, bela e feia, rica e pobre, pedante e humilde, poderosa e frágil. O livro é aberto com “Brasão”, um poema-manifesto poderoso, no qual o poeta afirma que “a cidade somos nós / nós somos a cidade”, “Somos a luz e a sombra / o caminho e a verdade”, “sabiás cantando / amores na fornalha”, e lembrando, em tom de advertência, que “cada pedra lançada contra nós é por nós arremessada” e ainda: “cada ruína que brota de morada são mágoas por nós entrincheiradas”.
“A Cidade Aberta” reúne oito poemas demolidores, iniciando com “Introdução ao Sanctus”, no qual Cassas identifica São Luís como “minha cidade / minha ruína / minha catarina mina / meu licor de tangerina / minha mina / meu buquê de hiroxima”. E encanta com “Barroca”, que mergulha na sensualidade na vida comum de São Luís: “a cidade acorda despida de segredos” / “desfolha os seios com maçãs no meio”, “sensual no carnaval” e “molhadinha de emoção no São João”. E exala paixão no poema “Carta a São Luís”: “Se a cidade fosse minha… / chamava a fada madrinha e o santo de Ribamar / e a batizava nuinha na igreja verde do mar”, e fecha afirmando que “se a cidade fosse minha não a deixava tombar”. Cassas percorre as entranhas da musa em dois poemas implacáveis: “O discurso do Mestre dos Becos” e o “Sermão dos Becos”.
Na “Cidade Relembrada”, Cassas vê São Luís sob risco e no poema “Convocação Geral” clama pelos seus maiores cantores, perguntando onde estão Ferreira Gullar, Nauro Machado, Josué Montello, Bandeira Tribuzi, João Mohana, Odylo Costa, filho, entre outros, convocando-os para “acender o círculo da palavra / adestrar as aljavas / reinaugurar a taba”. No mesmo bloco, o poeta revela a decadência da fé cristã na sofrível resistência do “Confessionário da Sé”, “ouvido atento de Deus”, consultório onde o ludovicense temente busca cura para doenças da alma, por meio de “receitas com bondade / antídoto de pecado: / o remédio do perdão”. E chega ao ponto alto com “Brechó do Pó”, cantando cruamente duas São Luís, “duas costelas do mesmo barro / duas mulheres do mesmo sarro / duas plantas do mesmo jarro”, sendo que “uma é suja / a outra mal lavada”, “uma está tombada / outra desmoronada”.
Nas páginas de “A Cidade no Varejo & Atacado”, o poeta dispara forte contra a hipocrisia e vai fundo nas entranhas ludovicenses, alcançando o ponto máximo com “Nossas Meninas”, uma declaração de amor absolutamente genial às prostitutas de São Luís, vistas como “almas generosas”, que “dão ombro pra chorar / seios para descansar / boca pra beijar / olhos para admirar / sexo pra relaxar”, e que “depois devolvem os clientes /amaciados e quentes / à fauna-faina da vida”. Nas páginas seguintes está “Lamentações dos Jardins do Roxy”, sobre as sessões pornôs do Cine Roxy na visão angustiada e profética da célebre Joana de Deus, Louca do Senhor. Ainda nesse bloco, Cassas enxerga o mar deprimido, a Feira do João Paulo e a da Praia Grande, a Borracharia do Arouche e dá receita de peixe-pedra frito.
No bloco “A Cidade & Alma Ensolarada”, Cassas homenageia e canta personalidades que dão grandeza a São Luís, como os poetas Bandeira Tribuzi, Nauro Machado, Ferreira Gullar e José Chagas, a médium Maria de Jesus Carvalho e a médica Maria Aragão – “Duas marias cheias de alegria / uma era espírita, a outra: comunista”, “Duas marias de luz / duas marias de cruz” -, o cantor e compositor Zeca Baleiro, a cantora Rita Benneditto, o poeta e militante ambiental Zé Nascimento Moraes, as duas versões de Antonio Vieira, o médico Odorico Amaral de Matos e o amigo José Ricardo Moreira. A homenagem a Tribuzi está em “Compromisso”, um dos mais belos e fortes poemas do livro, sobre um encontro às seis da tarde a que o poeta não pode faltar. E “A Cidade Transfigurada: o Véu & a Máscara” é composto de apenas um longo e denso poema “Édipo em Athenas (diálogo temperado de ódio que o amor engoliu no sódio”, no qual Cassas passa a impressão de ser ele o Édipo no tenso e arrebatador diálogo com São Luís na pele de Jocasta.
“A Cidade Dançante” reúne quatro poemas curtos, mas arrebatadores, um sobre bumba-meu-boi, um sobre fogueiras juninas, um cantando o tambor de crioulas e outro, o reggae. O boi de Cassas não tem chavelhos, índias, caboclos, Catirina e Pai Francisco; é apenas o “boi tesouro”, que “é o berro do céu no chão / o reino do pobre em ação / é cristo em ressureição / é a estrela do Maranhão”. Em “Ao redor da fogueira”, o poeta roga o cantar de matracas, tambores e pandeirões, “cantem vozes artilharia dos corações / cantem fogos de artilharia explosões”. “Tambor de Crioula” é genial: “Nigéria-cambraia / vesúvio de saias / castanha-de-caju / áfrica-sereia / negra incendeia / torna-se azul”. E o poema sobre o reggae, é igualmente forte: “detrás dos óculos lunares / dos guerrilheiros dos bares / quatrocentas radiolas / te contemplam”.
Antes de fechar sua monumental declaração de amor à São Luís, Luís Augusto Cassas abre, na sua cidade, espaço para dois registros poéticos fenomenais, “O Dono do Mar”, que é parte de um encarte de 24 páginas publicado em 2000, no jornal O Estado do Maranhão, relacionando dois José de Ribamar, o político, escritor e ex-presidente da República José Sarney e o padroeiro do Maranhão. “Um é cristão velho / outro é cristão novo / um é a voz de deus / outro é a voz do povo”. E em “A Cidade & o Fantasma Romântico”, Cassas retoma um tema que parece desafiá-lo sempre: o célebre e conturbado amor do poeta caxiense Gonçalves Dias e da ludovicense Ana Amélia.
Quatrocentona: Código de Posturas & Imposturas Líricas da Cidade de São Luís do Maranhão fecha com o bloco “O Renascimento da Cidade”, no qual o ponto alto é o poema “Exorcismo das Ruínas”: “Te consagro vento e te batizo água / de absolvo terra e te esconjuro mágoa / te invoco o fogo e penitencio o mal / abençoo os logos e te perdoo metal”. Suas páginas registram a genialidade e a maturidade de um poeta que sempre reagiu forte à limitação das regras fechadas, que sempre ousou desdizer o dito imposto, que sempre subverteu a ordem castradora e que da província se tornou um poeta brasileiro e universal. Sem favor um dos maiores, se não o maior, da sua geração.
São Luís, 15 de Maio de 2021.