Tudo começa com o resgate de uma fruta ancestral, como a origem dos tempos. Segue com um protesto indignado contra aves de rapina que lhe roubaram a cria. Se aconchega no sabor, nos olhos, na tez, nas curvas e na avassaladora paixão guerreira de juçara. Mostra o brilho da malacacheta no peitoral dos vaqueiros e a beleza das índias negras de um boi que dança em areias encantadas. Liberta passarinhos tristes para que eles cantem a liberdade na palmeira. Ensina o sacudir do esqueleto humano dançando um baiãozinho. Mergulha nas noites encantadas de luar no mangue, que tira marinheiros e caranguejos dos seus prumos. Ouve os alertas de um violeiro cego que enxerga até o fingimento da morte ao som de um baião num forró de raiz. Avança recordando a comovente paga de promessa a São João para lhe alegrar a festa. E termina o mágico roteiro pedindo ao Divino proteção contra o novo império, que lança “deuses de metal” do quintal de Alcântara. Isso é a essência de “Camapu”, disco lançado em 2018 e que reúne 10 poemas de encantamento musical que Cesar Teixeira compôs, embalou e ritmou com as raízes mais puras da música do Maranhão e do Nordeste mais próximo. O criador interpreta as criações com sua voz educada e enfática, dando a cada a devida carga dramática, como é sua marca.
“Camapu” é mais que um disco, é um tributo à cultura musical do Maranhão. Nele estão reunidas músicas inéditas compostas por César Teixeira nos anos 70 e 80 e por décadas adormecidas no baú de encantação musical do poeta e músico, portanto distanciadas de qualquer influência dos tempos de agora, o que lhes assegura um especial selo de pureza. Ao reuni-las nesse memorial, o compositor, do alto da sua autoridade poética e cultural, produziu um registro dos vieses autênticos da música maranhense, eternizando os ritmos num documento rico e de rara beleza, que contagia a cada faixa e inebria a cada audição, à medida que as nuanças dos poemas e as sutilezas melódicas vão se revelando.
Cada uma das 10 faixas expressa, com força e intensidade, o que ele próprio define como um motivo poético e um ritmo terreno, que toca qualquer nativo minimamente afinado com as suas raízes, e igualmente um “estrangeiro” com alguma sensibilidade musical. A sequência é a seguinte: o coco “Camapu”, a toada nordestina “Aves de Rapina”, o xote “Juçara”, a toada de boi de zabumba “Boi de Medonho”, a toada de boi de matraca “Toada de Passarinho”, o baião “Baiãozinho”, a modinha “Lua do Mangue”, o baião “Forró do Corta-Jaca”, a toada de boi de orquestra “Boi da Lua” e a ladainha “Ladainha de Alcântara”. Além disso, o disco abriga dois comoventes registros de voz, usados como “intertextos musicais”: um de 1972 do compositor Bibi Silva dando voz a um verso original de “Toada do Passarinho”; o outro, de 2008, registra a voz da criança Júlia Andresa Teixeira entoando versos de “Boi da Lua”.
As faixas de “Camapu” são poemas de versos delicados, mas maduros, consistentes, umas vezes suaves como sopros, outras vezes fortes como pancadas, e em alguns momentos amolados como faca, embalados em melodias apropriadas e contagiantes, que se encaixam perfeitamente nos seus motivos e ritmos. Quatro músicas expressam o ideário cultural e político que reforça a razão de ser do disco: “Aves de Rapina”, “Juçara”, “Lua do Mangue” e “Ladainha de Alcântara”. Cada uma exprime, por viés próprio, visões, posturas, atitudes e posições do compositor sobre situações e momentos da realidade em que se situa. “Aves de rapina” é um angustiado e incontido grito de revolta. “Juçara” é uma ode ao fruto mágico, à negritude e ao amor, “Lua do Mangue” canta a magia das reentrâncias do mangal maranhense e “Ladainha de Alcântara” é o levante das caixeiras do Divino contra a invasão opressiva de Alcântara pelo “novo império”. Compostos quando São Luís vivia ainda sob a pressão da ditadura, mas explodia em manifestações culturais, esses poemas-manifestos traduzem fielmente a realidade atual dos seus motivos. As demais faixas são pérolas musicais perfeitas, sem reparo ou porém.
“Camapu” ganha maior dimensão pela qualidade musical propriamente dita. As 10 faixas são canções belíssimas e primorosamente embaladas por arranjos magistrais, todos da lavra do próprio Cesar Teixeira, que vão de movimentos sofisticados aos mais simples, que encontram espaço e eco perfeitos em cada música. Disco sem contrabaixo e inteiramente sustentado pelo discreto, mas poderoso, disciplinado e bem executado violão de seis cordas de Israel Dantas, “Camapu” ganha dimensão pela base e solos da sanfona superior, irreparável e contagiante de Rui Mário, que também se esmera ao piano e responde pela direção musical, e da flauta transversa atrevida e afinada de João Neto, e mais ainda pelos duetos irretocáveis que as teclas e o sopro engatam aqui e ali. Tudo corretamente ritmado pela competente e densa percussão de Wanderson Silva e pela ressonância quase gregoriana do belo coro formado por Thaynara, Mairla, Regina Oliveira, Natália Coelho e Mazé Veras. Em meio a esses instrumentos geniais aparecem o providencial e envolvente violoncelo de Jorlielson Lima em “Camapu” e “Lua de Mangue”, e o banjo afiado de Robertinho Chinês em “Boi da Lua”.
César Teixeira foi buscar no seu baú de preciosidades inéditas um conjunto de pérolas para fazer de “Camapu”, na sua essência poética e na sua embalagem melódica, um disco para se ter e ouvir sempre, sem risco de cansaço.
As faixas
1 “Camapu”, que dá nome e abre o disco, resgata uma fruta ancestral, de sabor agridoce, que era vendida nas ruas de São Luís por pregoeiros que a ofereciam como “bombom da roça”, também chamada de “saco de bode” e “mata fome”. “Camapu” é um valioso resgate da memória cultural da Ilha, que César Teixeira embalou com melodia adequada, enriquecida por arranjos fortes da sanfona de Rui Mario e flauta de João Neto, ora isolados, ora em duetos afinados, que ganham peso com o eficiente violão de Israel Dantas, a intervenção forte e incomum do violoncelo de Jorlielson Lima, a precisa percussão de Wanderson Silva e a participação suave das vozes de Thaynara, Mairla e Regina Oliveira.
2 “Aves de Rapina” é um canto de dor e revolta causado por um drama pessoal e expressado nos versos fortes, mas primorosos, de poema superior e rimas perfeitas, nos quais Cesar Teixeira brada com a força da sua alma rebelde contra as aves de rapina que “levaram a semente (filho) que um dia plantei com todo amor”. E depois de relatar a perda, canta que “as ervas daninhas cresceram pelo chão do terreno baldio onde enterrei meu coração”. Os versos que se seguem são igualmente indignados, cortantes, que falam de uma viagem movida a tiquira, sal, pão e grande tristeza e lamento. O poema é musicado com uma bela e tocante melodia embalada por arranjos magistrais feitos pelo próprio músico para a sanfona pungente e elevada de Rui Mário e para a flauta tocante de João Neto, ambas sustentadas pela base enriquecida do violão de Israel Dantas, e tudo ritmado pela clave discreta, mas presente de Wanderson Silva.
3 “Juçara” é um emblema, uma declaração de amor ricamente adornada por símbolos que ultrapassam as fronteiras guajajara para alcançar as distantes plagas aymara. Sua poesia começa na troca de olhares no prato (alguidar) ao amanhecer e ganha mundo invocando forças como o sangue Guajajara e a negra íris da guerreira Dandara “incendiando a escuridão”. E segue querendo tomar juçara com “a farinha do prazer”, e “como num velho karaokê”, vai em frente invocando símbolos até no grito da aymara chilena Violeta Parra contra o luto da canção, e escrevendo versos de amor que sangram com as mãos do igualmente aymara chileno Victor Jara, o célebre autor de “Manifesto”. E termina flechado pela morena Guajá. A forte poesia é animada por uma música de elevada qualidade, com divisões apropriadas. Os arranjos de “Juçara” são corretos, ajustados, com a sanfona de Rui Mário e a flauta de João Neto cumprindo integralmente o que se propuseram, auxiliadas pelas cordas precisas de Israel Dantas, todos embalados pelas corretos zabumba e triângulo de Wanderson Silva. Esse hino ao nosso “vinho” ganha força no coro preciso e tocante de Natália Coelho, Mairla e Regina Oliveira.
4 “Boi de Medonho” é uma “toada de pique” com advertência direta e sem rodeios ao “contrário” que desdenhou do Boi de Medonho. Com versos simples, mas belos, Cesar Teixeira desenha com precisão a imagem de um boi litorâneo que, com seus adornos de flor de malacacheta e com suas quase míticas índias negras, dança no areal, levando na língua o gosto de pinga e sal. Uma imagem que inspira magia. A música cresce com os arranjos ricamente executados pelo violão de Israel Dantas e pelo desempenho preciso da sanfona de Rui Mário e a flauta de João Neto, ora em dueto ajustado, ora cada uma para seu lado. Nessa toada, Wanderson Silva vai fundo no sotaque de zabumba, que ganha suavidade no coro de Natália Coelho, Mairla e Regina Oliveira. Um clássico do gênero.
6 “Toada de Passarinho” é um grito de liberdade. Cesar Teixeira aproveitou os versos iniciais de Bibi Silva, seu pai, e compôs as três outras estrofes, produzindo uma toada comovente. Bibi Silva soltou seu canário, seu sabiá e o seu curió para, lá na palmeira, ouvir qual dos três canta melhor. Cesar Teixeira completa dizendo que cansou de vê-los presos, “soltando gritos de paixão”, e fecha, afirmando que os três passarinhos deixaram “o espinho de uma felicidade”, garantindo que “nem tiro de espingarda vai matar essa saudade”. A bela e forte toada flui nos arranjos executados por Rui Mário e João Neto nos duetos sanfona/flauta, sustentados no violão de Israel Dantas. A percussão de Wanderson Silva é competente no sotaque de matraca, assim como as vozes de Thaynara, Mairla e Regina Oliveira no coro.
7 “Baiãozinho” mostra a forte ligação de Cesar Teixeira com a música nordestina, que trata como parte da cultura musical do Maranhão. No caso, compôs um exemplo primoroso dessa ligação, avisando que quem nunca dançou um baião “não pode saber se funciona o esqueleto humano à luz do lampião”. E ensina que quando tem um baião todos se convidam, inclusive a garrafa de cana. Os arranjos nesse ritmo são dominados pela sanfona superior de Rui Mário, com o apoio eficiente da flauta de João Neto, com a base firme do violão de Israel Dantas, da percussão eficiente de Wanderson Silva e do complemento musical do coro de Thaynara, Mairla e Regina Oliveira.
8 “Lua do Mangue” é uma declaração de amor de Cesar Teixeira às noites de lua cheia sobre as atraentes e misteriosas reentrâncias das ilhas do Maranhão. Poema de encanto, mas marcado pela delicadeza com que chama Catarina para “acender a luz da lamparina em teu olhar”. Cesar Teixeira fala da angústia delirante dos marinheiros que desembarcam sedentos e zangados por conta da calmaria do alto mar. E invoca a imagem do caranguejo que “fez da lama sua razão de viver e de lutar sobre o carvão, e perder nas armadilhas das (encantadoras) ilhas do Maranhão”. A música é elevada, um padrão de evolução melódica de um compositor maduro e genial. E ganha força nos arranjos para apenas violão, piano e violoncelo, que o próprio autor elaborou com delicadeza extrema. O violão de Israel Dantas dialoga intensamente com o piano de Rui Mário, com o arbítrio magistral do violoncelo de Jorlielson Lima. “Lua do Mangue” é uma joia de ponta do acervo de Cesar Teixeira.
9 “Forró do Corta-Jaca” é um exemplar genial do ritmo nordestino na produção de Cesar Teixeira. O poema escrachado relata, como num conto de Garcia Márquez, o alerta de “um cego do cinema mudo que já viu de tudo na escuridão”, dando conta de que no baião fervendo tem “gente aí gemendo na rede, subindo na parede, fingindo que morreu”. O poema avança com outras visões fantásticas do cego ao ritmo do baião. Nos arranjos, o compositor valorizou as intervenções da sanfona de Rui Mário e da flauta de João Neto, tendo como base o violão de Israel Dantas e a percussão firme e correta de Wanderson Silva, com a participação do coro de Thaynara, Mairla e Regina Oliveira.
11 “Boi da Lua” dispensa apresentação, consagrada que é como um dos clássicos da música maranhense, não havendo um só nativo da Ilha de Upaon Aço, e provavelmente de todo o Maranhão, que não a tenha cantado dançando num arraial junino. Na versão de “Camapu”, a promessa de Cesar Teixeira a São João mantém os arranjos básicos da primeira gravação, acrescidos de adornos magistrais para a sanfona de Rui Mário e para a flauta de João Neto, enriquecidos pela participação especial do banjo de Robertinho Chinês, indispensável ao sotaque de orquestra, mais a precisa percussão de Wanderson Silva. Não bastasse isso, Cesar Teixeira embalou a toada num magistral arranjo de vozes executado por Mazé Veras, Natália Coelho e Regina Oliveira.
12 “Ladainha de Alcântara” fecha “Camapu” dando o realce definitivo à beleza, à nobreza e ao encantamento contidos em todas as faixas. Nela, César Teixeira dá um grito de alerta para a chegada de um “novo império” em Alcântara, que nega o pão e o peixe aos quilombolas, e que lança deste quintal “deuses de metal”. Vai buscar proteção no Divino pelas vozes e pelo rufar das sacrossantas caixeiras, que pelas ladeiras resistentes de Tapuitapera, cantarão os mistérios com a voz dos sinos. O poeta usa o latim das ladainhas (Ora pro Nobis) para pedir a proteção do Divino contra essa estranha “espécie de doce” e de licor, que “trouxe tanta dor”. E o faz com fé plena e inabalável na bandeira do Divino. Cantando um discurso atual, a ladainha de Cesar Teixeira ganha dimensão superior como uma peça elaborada na erudição sacra seiscentista. Os arranjos colocaram o piano de Rui Mário e o violão de Israel Dantas sob a regência suprema do violoncelo de Jarlielson Lima, que ganha força com intervenções das caixas rufadas por Wanderson Silva. Tudo isso somado ao magistral arranjo de marca gregoriana para as vozes de Mazé Veras, Natália Coelho e Regina Oliveira produziu um encantamento digno de um Divino.
São Luís, 27 de Março de 2021.