Acatada pelo governador Flávio Dino (PCdoB) sem restrição técnica, política ou institucional, tendo ele anunciado ontem os termos da sua implantação a partir de terça-feira (05/05), a decisão do juiz Douglas Martins, titular da Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Capital, de impor bloqueio total (lockdown) na Ilha de Upaon Açu por causa do novo coronavírus, desencadeou também uma forte onda de questionamentos sobre se ele tem competência para adotar a medida atendendo a Ação Civil Pública assinada por promotores de áreas afins nos municípios de São Luís, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa, alcançando 1,5 milhão de maranhenses. Muitas vozes se posicionaram a favor da medida judicial, interpretando-a como legal e adequada, enquanto muitas outras vozes criticaram duramente, não o bloqueio em si, mas a atitude do juiz, vendo nela uma usurpação de prerrogativa exclusiva do governador do Estado. Outras críticas igualmente duras foram feitas à postura do juiz, que ocupou espaços de mídia para explicar sua decisão e fazer advertências e até ameaças a quem eventualmente vier a desobedecer às regras, chegando mesmo a afirmar, enfaticamente, que o desobediente “estará cometendo um crime”.
Como o bloqueio total é uma medida extrema e só havia sido adotada na China, onde a pandemia começou, em parte da Itália, onde o novo coronavírus tem sido devastador, e na Índia e na Indonésia, a adoção na Ilha de São Luís repercutiu fortemente dentro e fora do Maranhão, com a maioria dos observadores criticando duramente o protagonismo do juiz Douglas Martins. Ontem, por exemplo, os comentaristas do programa Em Pauta, da Globo News, Demétrio Magnoli, que é cientista político, e Eliane Cantanhede, experiente comentarista política, bateram forte na decisão, argumentando que o magistrado atropelou as regras e tomou uma decisão que não lhe cabia tomar, usurpando uma prerrogativa do chefe do Poder Executivo. Mais do que isso, ao sair concedendo entrevistas para falar sobre o que decidiu, feriu regra de conduta da magistratura, à medida que não é papel de juiz sair por aí explicando suas decisões e agindo como um ente executivo. Demétrio Magnoli observou: “Imaginem se a partir de agora juízes começarem a decretar lockdown pelo país afora. Será a anarquia”.
A Coluna ouviu dois advogados experientes e um magistrado com larga vivência. Os três avaliaram que o titular da vara de Interesses Difusos e Coletivos foi além da fronteira das suas prerrogativas e invadiu a seara do Poder Executivo. Para começar, a Ação Civil Pública dos quatro promotores aponta a desobediência civil ao isolamento social, mas não acusa o Governo do Estado de negligência ou ineficiência – e nem poderia, porque todas as avaliações feitas até aqui mostram que o governador Flávio Dino é um dos mais ativos e eficientes governantes na guerra ao novo coronavírus, incansável nos apelos para que as pessoas fiquem em casa. Além disso, o juiz teria cometido uma falha de procedimento ao decidir sem consultar o Governo do Estado, tomando uma decisão sem fundamentos científicos.
Os críticos acham que o governador Flávio Dino, mesmo concordando com a medida em si, deveria tê-la contestado na Justiça sob o argumento de que o juiz de Interesses Difusos e Coletivos invadiu a seara do Executivo. Com a sabedoria de ex-magistrado federal, porém, o governador agiu com pragmatismo. Por quê tentar inviabilizar uma decisão que atende rigorosamente a uma necessidade urgente do Governo? Em vez disso, aproveitou a liminar para definir as regras e implantar a medida sem o desgaste de tê-la imposto à população. E o faz com a certeza de que vem fazendo o que deve e pode ser feito, “mergulhado nisso há 45 dias”, como declarou, em tom de desabafo, numa entrevista nesta semana ao portal UOL.
Montado no prestígio que vem conquistando como gestor público e líder político, o governador Flávio Dino agiu com pragmatismo inteligente, até porque não dispõe sequer de tempo para se ocupar com o movimento midiático do juiz Douglas Martins. Para ele, o que está valendo mesmo é o bloqueio total da Ilha de São Luís como uma pancada certeira no novo coronavírus.
PONTO & CONTRAPONTO
ESPECIAL
Segue uma reflexão interessante para quem tenta vislumbrar racionalmente o futuro da sociedade e da economia no imprevisível mundo pós-pandemia do novo coronavírus:
Quando a pandemia passar
Ricardo Viveiros
Em meio à prioritária luta pela preservação da vida, travada na linha de frente da ciência médica, buscam-se soluções para a sobrevivência da economia. Além de vidas é preciso salvar empresas, empregos, investimentos, tributos, retomar o nível de atividade após o domínio da Covid-19. Na pandemia, a única certeza é de que tudo é incerto.
Depois que o furacão passar, o mundo não será o mesmo. Algumas transformações, que estavam em andamento, deverão ser aceleradas, incluindo o uso de meios digitais, a intensificação do e-commerce e de tecnologias voltadas ao aprimoramento da qualidade e produtividade. No setor de serviços, entre outros, comprovou-se a viabilidade do home office, até com mais resultados.
Na agricultura de precisão, que contribui para racionalizar o uso seguro de fertilizantes e defensivos, tais mudanças não serão na mesma velocidade em todas as nações e, até mesmo, dentro de países como o Brasil, com assimetrias regionais. Deve-se levar em conta a questão da governança, distinta entre as empresas de maior porte e o grande número de produtores familiares. Em muitos casos, o tipo de gestão e os que comandam seguem modelos tradicionais. Aos poucos, vão sendo influenciados e aprendendo com os jovens, que agregam conhecimento acadêmico e expertise em tecnologias e práticas modernas.
Na área da saúde, há um ponto muito importante que a pandemia provou necessário: o prontuário digital. Esse avanço possibilita ao paciente e a qualquer médico que o esteja atendendo, terem acesso aos dados clínicos em qualquer lugar do País ou do Planeta. É fundamental que os profissionais que assistem um paciente possam acessar todas suas informações de saúde, incluindo eventuais morbidades que podem agravar a Covid-19. O prontuário digital facilita e direciona o tratamento desde o início, ajuda a salvar vidas.
Por outro lado, como a humanidade está enfrentando um “inimigo” desconhecido, que a ataca há pouco mais de seis meses, é cedo para análises conclusivas do que vá acontecer após a pandemia. Algumas tendências de mudanças parecem adequadas e começam a ser levadas em conta. A digitalização, antes opcional e importante, torna-se irreversível e decisiva.
Algo muito visível está nas empresas de todos os segmentos que estão conseguindo atender bem neste momento. Elas deverão sair fortalecidas desta crise, com boas perspectivas de crescer, fidelizar clientes e conquistar novos. A Covid-19 está mostrando com mais clareza, também o caráter das organizações.
Algumas lutam para manter colaboradores, investir em qualidade, preservar o bom atendimento e a prestação de serviços de alto nível. Estas veem a pandemia como um momento de empenho coletivo e oportunidade de crescer na produtividade pela sinergia e liderança agregadora, participar de uma corrente ampla em prol do interesse coletivo.
Outras, veem a crise como chance para ajustar o quadro atual à demanda reduzida, diminuir qualidade, aumentar preços, menosprezar a entrega de bons produtos e serviços e exigir mais resultados como ação unilateral, descolocada do interesse geral na luta pela sobrevivência. Estas, por miopia empreendedora, estão se descapitalizando de algo em que investiram por anos: os recursos humanos, seu mais valioso patrimônio. Terão mais dificuldades para se recompor depois da crise.
O momento é de muita sensibilidade, ou seja, de extrema valorização de quem está ao lado da sociedade, do cliente, do fornecedor, dos parceiros e de seus próprios colaboradores. Empresas que souberem entender o momento e atender ao que se espera de organizações éticas, sairão fortalecidas da pandemia.
Outro aspecto que parece caminhar para mudança mais profunda é a horizontalização da produção. Tal conceito, difundido e desenvolvido desde que a Era Digital intensificou a globalização nos anos 1980, deverá ser revisto. A crise mostrou que a dependência de insumos, matérias-primas e produtos e/ou componentes de outros países coloca várias cadeias de suprimentos em risco. É provável, assim, que as indústrias busquem um reposicionamento, com uma estrutura de produção mais autossuficiente no contexto de cada país e menos dependente de fornecedores externos. Surgem aí numerosas oportunidades para segmentos fornecedores de matéria-prima, peças, componentes e serviços para fábricas de bens de consumo e de capital, bem como na agroindústria.
A história demonstra que a civilização aprende pouco e esquece com rapidez os problemas depois das crises. Portanto, é preciso estar atento, quando a ciência solucionar o desafio biológico do novo coronavírus, o que certamente ocorrerá, a como as pessoas e as empresas emergirão: será aprendida a dura lição, ou retornarão à “normalidade” como se nada tivesse ocorrido? Se a maioria do setor produtivo vislumbrar um mundo com mais competição e liberalismo, em um momento em que a maior parte da população parece esperar mais cooperação e solidariedade dos donos do capital, teremos perdido a histórica oportunidade de evoluir para melhor.
Em Tempo: Ricardo Viveiros é jornalista, escritor, professor e autor dos livros “A vila que descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça seja feita” (Sesi) e “Educação S/A” (Pearson).
São Luís, 02 de Maio de 2020.