Pesquisa sobre corrida nuclear mostra um Sarney bem maior do que é mostrado na grande imprensa

 

A grande imprensa mantém uma relação de altos e baixos com José Sarney, desde que ele, então vice-presidente da República eleito, recebeu do destino, com a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, a monumental, complexa e desafiadora tarefa de conduzir a transição da ditadura militar, que apoiou até o rompimento em 1984, para a democracia plena no Brasil, da qual é o principal fiador. Essa relação produziu um Sarney e escondeu outro. O tratamento dado ao presidente José Sarney evoluiu da desconfiança para o elogia fácil, com edição do Plano Cruzado. Mudou radicalmente com o fracasso da política econômica, quando o presidente foi jogado no limbo. Na discussão do mandato presidencial pela Assembleia Nacional Constituinte, embora tenha aberto mão de um ano de mandato, que era de seis anos, foi mostrado ao país – e continua sendo – como o presidente que “comprou o mandato de cinco anos” com benesses, emissoras de rádios e outras concessões. Derrotado no plano econômico, Sarney foi quase massacrado pelo então candidato Fernando Collor de Mello (PRN) durante a campanha presidencial de 1989. Deixou governo sendo lembrado mais pelos fracassos do que pelas conquistas, que foram muitas, sendo a maior delas a transformação do Brasil na segunda maior democracia do planeta. O fato de ter continuado na vida pública elegendo-se senador pelo Amapá em 1990 – o PMDB lhe negou legenda no Maranhão -, despertou a má vontade da grande imprensa, que de lá para cá não o perdoou, atacando-o sistematicamente, principalmente durante os três mandatos senatoriais e de presidente do Senado e do Congresso Nacional. No momento, sem mandato, com idade avançada, mas atuando nos bastidores com uma lucidez de fazer inveja, Sarney continua alvo, ora de estocada gratuita, ora de registro elogioso, mas também esses às vezes recheados de ironia e má vontade. Analistas isentos sempre alertaram que quando aquele período presidencial começasse a ser estudado por uma geração de pesquisadores não motivada pelas paixões políticas dos anos 70, 80 e 90 do século passado, as pesquisas revelariam um Sarney diferente, mais real, com defeitos e virtudes, mas um político bem maior do que o oligarca ilustrado, provinciano, esperto e oportunista e usuário da máquina pública como tem sido pintado.

Esse Sarney escondido começou a aparecer ontem, com o lançamento, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em versão digital, de uma pesquisa em que o então presidente brasileiro articulou com seu amigo argentino, presidente Raúl Alfonsín – ele também condutor de uma transição da ditadura para a democracia -, uma relação de Estado que, baseada na confiança mútua e no jogo aberto, levou ao fim as tensões entre Brasil e Argentina por causa da corrida nuclear no Cone Sul. Não foi um processo fácil, mas a visão dos dois presidentes de que o rumo de tal disputa na região dependia do Brasil e da Argentina sepultou o clima de tensão. Na sua edição de sábado, 18 de julho, o jornal Folha de S. Paulo publicou um registro alentado sobre a pesquisa As origens da cooperação nuclear – Uma história oral crítica entre Argentina e Brasil, organizada por Matias Spector, professor da FGV e colunista da Folha, Rodrigo Mallea, diplomata argentino, e pelo professor Nicholas Wheeler, da Universidade Birmingham.

Segue o material publicado pela Folha:

Amizade de Sarney e Alfonsín

freou corrida nuclear no Cone Sul

Presidentes do Brasil e da Argentina no fim dos anos 80 selaram fim da tensão ao visitar usinas dos dois lados

Para Sarney, confiança mútua levou a diálogo bem mais fácil do que atual negociação internacional com o Irã

Por Isabel Fleck

sarney alfonsin
José Sarney e Raúl Alfonsín: amizade que os fez agir como estadistas, freou a corrida nuclear no Cone Sul e aproximou definitivamente Brasil e Argentina

Uma corrida nuclear na América do Sul foi evitada na década de 80 pelo que o então presidente José Sarney e sua equipe apelidaram de “diplomacia da foto” – a relação de confiança desenvolvida por ele e o presidente argentino Raúl Alfonsín (1927-2009).

O termo, segundo o próprio Sarney, se refere às imagens feitas dos dois presidentes durante visitas às usinas nucleares de Pilcaniyeu, na Argentina, e Aramar, no Brasil, em 1987 e 1988, respectivamente.

Os eventos teriam evidenciado que os países “não tinham mais nada a esconder”.

“Estabeleceu-se uma relação de confiança entre nós. O que está sendo visto hoje com o Irã [o acordo nuclear deste mês, com seis potências], com dificuldade imensa, fizemos na região sem a participação de organismos internacionais”, disse Sarney à Folha.

O freio na corrida nuclear promovido pela proximidade entre os dois mandatários é um dos temas do livro digital “Origens da Cooperação Nuclear –uma História Oral Crítica entre Argentina e Brasil”, que será lançado nesta segunda (20) pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) no site http://cpdoc.fgv.br/.

Organizada pelo professor da FGV e colunista da Folha Matias Spektor, pelo diplomata argentino Rodrigo Mallea e pelo professor da Universidade de Birmingham Nicholas Wheeler, a publicação traz a transcrição de conferência sobre o tema realizada no Rio em 2012 e que reuniu ex-chanceleres, diplomatas e funcionários ligados ao tema nuclear.

Nos anos 80, nenhum dos dois países tinha interesse no Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que só seria ratificado pela Argentina em 1995 e pelo Brasil em 1998.

Como alternativa, Sarney e Alfonsín iniciaram conversas que levariam, em 1991, à criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, que serviria de “garantia” do caráter pacífico de seus programas nucleares.

Sarney diz ter confiado em Alfonsín desde o primeiro encontro, em 1985. “Expus que nossa divergência era baseada numa tese do século 19 de que quem tivesse o domínio do [rio da] Prata tinha o domínio da América do Sul, que era obsoleta. Ele concordou.”

“Ele achava que aquilo mudaria a história do continente, como mudou. A partir daí acabou qualquer corrida nuclear no continente.”

Argentina estava dez anos à frente na questão nuclear, diz ex-presidente

Sarney afirma ter visto vantagem do vizinho ao conhecer central nuclear de Pilcaniyeu, em 87

Governo do Brasil resistia a fazer acordo de inspeções mútuas; Sarney nega ter sofrido pressão de militares

Ao chegar à usina de Pilcaniyeu, próxima a Bariloche, em julho de 1987, o então presidente José Sarney (1985-1990) se deparou com uma estrutura que surpreendeu os técnicos brasileiros que o acompanhavam.

“O presidente [Raúl] Alfonsín abriu a usina para que soubéssemos até que ponto eles tinham avançado e descobrimos então que eles estavam dez anos na nossa frente”, disse Sarney à Folha.

O convite para a visita de Sarney a uma instalação “ultrassecreta” já fazia parte da tentativa de Alfonsín de emplacar um acordo de inspeções nucleares mútuas, do qual o Brasil vinha se esquivando.

Um documento da Chancelaria argentina de maio de 1985 orienta o então chanceler argentino, Dante Caputo, a oferecer ao colega brasileiro, Olavo Setúbal, em reunião na semana seguinte “um regime de controles mútuos sobre o uso exclusivamente pacífico de materiais, equipamentos e instalações nucleares”.

A proposta argentina – revela um telegrama de 1977 do então vice-presidente Adalberto Pereira dos Santos ao general Ernesto Geisel– seria um eco do que fora sugerido naquele ano aos dois países pelo deputado americano democrata Robert Findley, sem, segundo o legislador, orientação do governo dos EUA.

Em novembro de 1985, antes de reunião dos presidentes em Foz do Iguaçu, um documento do Departamento de Energia e Recursos Minerais do Itamaraty diz que o governo brasileiro deveria responder à tentativa argentina de pressionar por um plano de inspeções com uma proposta de um “grupo de trabalho”.

“Um grupo de trabalho específico poderia contrabalançar alguma sugestão mais objetiva do lado argentino, que se deseje evitar por inoportuna”, diz o texto.

Sarney nega que a resistência sobre as inspeções tenha sido motivada para atender a grupos de militares que não gostavam da aproximação dos dois países no tema. “Foi uma estratégia para não termos que confessar aos argentinos que estávamos bastante atrasados em relação a eles”, diz.

As inspeções seriam autorizadas em 1991, no governo Collor, com a criação da Abacc (Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares).

Após constatar o “atraso” brasileiro na usina argentina, Sarney enviou, em 1987, o assessor especial da Presidência, Rubens Ricupero, a Buenos Aires, para anunciar a Alfonsín que o Brasil tinha conseguido também enriquecer urânio.

Foi mais uma demonstração do misto de afirmação e tentativa de aproximação que marcou os dois governos na questão nuclear. “O anúncio brasileiro ajudava a dizer: ‘Bem, agora que estamos parelhos, vamos esquecer isso! ‘”, afirma Ricupero.

“Foi uma aposta arriscada”, diz Matias Spektor, professor da FGV. “Os dois presidentes compraram briga com seus militares e decidiram aumentar a transparência de seus programas sem ter certeza do que o outro estava fazendo.” (Isabel Fléck)

Brasil deve R$ 12 milhões a órgão conjunto

O governo brasileiro deve US$ 3,4 milhões (cerca de R$ 12 milhões) à Abacc (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), referentes a cerca de 1/3 do orçamento de 2014 e ao total de 2015. O pagamento de US$ 1,7 milhões, como parte da contribuição de 2014, só foi feito em junho. Segundo a Folha apurou, o calote do Brasil tem causado mal-estar entre argentinos. A agência é responsável por inspeções mútuas desde 1991.

 

Ações que evitaram a corrida nuclear

Dez.1983
Em sua posse, o presidente argentino Raúl Alfonsín se compromete com um programa nuclear pacífico.

Abr.1985
Ex-ministro militar diz à Folha que Brasil teria bomba atômica até 1990.

Mai.1985
Argentina propõe sistema de inspeções às usinas atômicas; Brasil diz que tema precisa ser discutido internamente.

Set.1985
Leônidas Gonçalves, chefe do Estado Maior, se declara a favor da bomba atômica ao ‘Correio Braziliense’, o que faz Argentina pedir esclarecimentos ao Brasil.

Out.1985
Argentina diz que avião militar do Brasil sobrevoou usina de Pilcaniyeu duas vezes.

Nov.1985
Sarney e Alfonsín firmam a Declaração do Iguaçu, em que criam grupo de trabalho sobre energia nuclear e comissão para planos de livre-comércio entre os dois países.

Jul.1987
Sarney visita Pilcaniyeu e convida Alfonsín para visitar as instalações brasileiras.

Abr.1988
Alfonsín visita a instalação de Aramar. Os dois presidentes assinam a Declaração de Iperó, transformando o grupo de trabalho de política nuclear em comitê permanente.

Out.1988
Constituição brasileira proíbe uso da energia atômica para fins não pacíficos.

 

São Luís, 20 de Julho de 2015.

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