Ferreira Gullar partiu aos 86 anos deixando um legado que só em décadas futuras será devidamente organizado e avaliado, e exatamente por isso deixou motivos de sobra para uma ampla e saudável discussão em torno dele próprio, a respeito de até onde ele realmente foi como homem engajado no seu tempo, e até onde esse engajamento alcançou e esmiuçou os mil traços da nossa cultura. Não há o que discutir que antes de tudo ele foi o grande poeta brasileiro de nosso tempo – para muitos o maior poeta de língua portuguesa vivo até sexta-feira, 2 de dezembro de 2016 -, dono de uma obra que há décadas vem encantando o mundo, a começar pelos domínios da língua portuguesa. Mas além disso, Ferreira Gullar foi um intenso, pleno e visceral militante da cultura, atuando nos seus mais diferentes campos: crítico literário – com enfoque sobretudo na linguagem poética -, critico de arte – com fascínio pelas artes plásticas, na qual incursionava sem pretensões no campo da colagem – ensaísta, dramaturgo, cronista, novelista, tendo se celebrizado também como polemista. Não há, na história contemporânea da cultura brasileiro, um militante tão pleno, tão abrangente e tão honesto como Ferreira Gullar.
O que mais chama a atenção na obra de Ferreira Gullar é que ele não fez nenhum esforço para dissociar o poeta universal do crítico, do militante e do polemista. E o segredo para isso foi a simplicidade como via o mundo. Quem conhece sua poesia identifica o autor quando lê uma crônica de sua autoria. Não há em toda obra poética do autor de “Poema Sujo” uma palavra que não seja do domínio público, da linguagem coloquial. A diferença é que o poema desenha, pinta e dá cheiro a uma cidade onde a vida é pobre, é suja, mas que traz entranhada na sua pobreza e nas suas duras verdades a alegria da poesia, que ninguém relatou como Ferreira Gullar. “Poema Sujo” reúne duas marcas de Gullar: buscar alegria onde a vida nada tem de alegre, e externar sua indignação com tudo o que distorceu o mundo mágico que é rascunhado nas entrelinhas sujas do poema maior. E o fez mostrando uma São Luís linda e suja, quente, com suas sestas, seus amores sufocados, o cheiro de sexo, que se misturava ao de mijo e ao de merda; a São Luís das lembranças, “da dor em voz baixa/de vergonhas que a família abafa/em suas gavetas mais fundas/de vestidos desbotados/ de camisas mal cerzidas/de tanta gente humilhada comendo pouco/ mas ainda assim bordando de flores suas toalhas de mesa/ suas toalhas de centro (…).
Nos seus livros mais importantes, Ferreira Gullar mantém o mesmo padrão de linguagem, embora faça exercícios os mais diversos na disposição dos versos, das palavras, como nas suas experiências estéticas, nas quais buscava multiplicar as possibilidades de comunicação. Daí ser apontado por muitos como o criador de uma nova estética, que culminou com a aventura concretista, na qual ele chegou ao limite, mas que depois abandonaria ao perceber que gente como os irmãos Campos, gestados e fechados na redoma do academicismo, caminhava para criar uma espécie de ditatura estética. Sua resposta viria em 1969, quando lançou o ensaio “Vanguarda e Desenvolvimento”, propondo um conceito mais livre de vanguarda estética. Era esse crítico que naquele momento enfrentava a ditadura nas artes, nas assembleias estudantis, nas agitadas tertúlias intelectuais, nas subterrâneas reuniões do Partidão e, quando achava necessário, saía às ruas do efervescente Rio de Janeiro de então Rio de Janeiro de então, correndo todos os riscos. E foi essa militância indômita, da qual nunca abriu mão, que o fez partir para o exílio em 1971, forçado a peregrinar por uma América Latina em convulsão, até encontrar em Buenos Aires, entre maio e outubro de 1975, força e tempo para escrever a sua obra-prima.
Há 11 anos, sem “espanto” para escrever poemas, Ferreira Gullar se tornou colunista do jornal Folha de S. Paulo. Publicados aos domingos, os seus artigos logo se transformaram em referência para milhares de brasileiros, que se encantaram não apenas com a sua honestidade intelectual e política. Ícone da esquerda nos anos da ditadura e depois dela, Gullar deu uma guinada radical na sua orientação política. Seus antigos seguidores o acusaram de dar uma guinada à direita depois que ele passou a ser um crítico ferrenho dos governos do PT. Os fatos que vieram à tona na mangueira da Operação Lava Jato atiçaram sua indignação, de modo que ele passou a ser uma das vozes que mais alto gritaram por mudanças urgentes no País, assumindo, mais uma vez, um papel de vanguarda, agora como analista da cena brasileira. Gullar não deixou nada passar em branco. Cada vez mais indignado, o poeta decretou o fim da bipolaridade ideológica no Brasil e no mundo, puxando a orelha do espectro da direita e sempre tendo o cuidado de defender a democracia e o estado democrático de direito, não fazendo qualquer tipo de concessão que implicasse alguma restrição às liberdades civis, em especial a liberdade de expressão.
PONTO & CONTRAPONTO
O poeta e o artista que muitos badalam mas poucos conhecem
Muitos dos registros sobre sua partida revelaram em muitas versões online de jornais, sites, blogs e outros canais de comunicação um rastro constrangedor de ignorância sobre o homem de cultura que foi Ferreira Gullar. Uns se limitaram a destacar-lhe o viés poético, outros generalizaram definindo-o como “escritor”, enriquecendo seus registros com trechos manjados dos seus poemas, especialmente “Poema Sujo”, tendo também os que, no desespero de não passar em branco, publicaram informações nada consistentes sobre o militante político de todos os dias e o polemista que em muitos momentos sacudiu o mundo político e o universo cultural.
Sobre o poeta de “Um pouco acima do Chão”, “Luta Corporal”, “Dentro da Noite Veloz”, “Poema Sujo”, “Uma luz do chão”, “Na vertigem do dia”, “Crime na Flora” e “Barulhos”, talvez a melhor definição seja a do conservador Tristão de Athayde: “A poesia de Ferreira Gullar soube evitar, da maneira mais perfeita, esse duplo escolho. Reagiu contra o esteticismo burguês, indiferente da miséria social e da opressão, da injustiça, sem aceitar, entretanto, a subordinação da liberdade criadora, no caso a poética, aos cânones do academicismo proletário. Mantendo sua liberdade criadora, ante o dogmatismo oficial do realismo socialista e afirmando o seu direito de criatividade estética e acadêmica, a poesia social de Ferreira Gullar assume uma posição autêntica, em face desse duplo problema social e cultural moderno, que considero primordial em todos os terrenos, e a que tenho chamado de elitização das massas e massificação das elites. (…) O lirismo trágico e subversivo de Ferreira Gullar é um pequeno mundo dos problemas mais candentes da beleza poética, deste fim de civilização e de século, que estamos vivendo em carne viva e de que esse grande poeta é uma das vozes mais autênticas”.
E nessa definição cabem o crítico e ensaísta de “Teoria do Não-Objeto”, “Cultura posta em questão” e “Vanguarda e Subdesenvolvimento”; o dramaturgo de “Se ficar o Bicho pega, se correr o Bicho come”, o novelista de “Irmãos Coragem”, o letrista de “Trenzinho Caipira”, eternizada na voz de Milton Nascimento; o tradutor de “Canta Coração”, que apaixonou e apaixonando o brasileiro na voz de Raimundo Fagner. E bastava assistir a um programa em que Gullar se manifestasse ou a uma entrevista para que o cidadão mais humilde compreender com clareza suas posições.
Ferreira Gullar foi um poeta maior, acima do bem e do mal. Foi um pensador cultural como nenhum outro no seu tempo. E foi um artista sem limites.
Uma visita especial e a festa do adeus a São Luís
Radicado no Rio de Janeiro, mais precisamente em Copacabana, onde se sentia no paraíso, Ferreira Gullar retornou poucas vezes a São Luís desde que partiu, em 1951. O pavor de viajar de avião, que se acentuou com o tempo, foi, segundo ele próprio, o principal obstáculo. Mês assim, Ferreira Gullar viveu dois momentos especiais em São Luís.
A visita
O primeiro deles teve caráter cultural: em junho de 1977, Gullar desembarcou em São Luís para lançar aqui “Poema Sujo”, trazendo também na bagagem exemplares de “Dentro da Noite Veloz”. A visita festiva aconteceu cerca de um ano depois do explosivo e festejado lançamento do livro no Rio de Janeiro, onde Otto Maria Carpeux defendeu que ele deveria chamar-se “Poema nacional”. Naquele momento, os anos de chumbo da ditadura começavam a perder densidade e já era possível vislumbrar leves sinais de luz no fim do túnel. São Luís sentia ainda, fortemente, a perda do poeta Bandeira Tribuzi, morto em 76, em circunstâncias dramáticas. A Noite de autógrafos do “Poema Sujo” aconteceu na então badalada Livraria JC, na Rua do Sol, em frente ao Teatro Arthur Azevedo. Ali, no início da noite, a nata da cultura da Ilha, da situação e da oposição, se reuniu num momento mágico. Houve discursos, declamações. Escudado pelo poeta e agitador cultural Valdelino Cécio, por ele definido como “um poeta novo desta terra fecunda de poetas”, Ferreira Gullar parecia em casa, atendendo a todos com o seu sorriso largo e com gestos gentis. Ninguém ficou sem livro nem autógrafo. Foi uma noite memorável no grande salão iluminado da inesquecível Livraria JC.
A festa do adeus
O segundo momento foi político. Ferreira Gullar se despediu de São Luís no final de 2001, quando desembarcou na cidade para a inauguração da Avenida Ferreira Gullar. Foi difícil convencê-lo a deixar seu conforto e sua segurança no Rio de Janeiro para atravessar parte do país de avião, mesmo que o motivo fosse receber uma homenagem daquela dimensão. Afinal, tratava-se do prolongamento do complexo urbano da Litorânea, que ligaria a Ponta D`Areia à Avenida Carlos Cunha. Gullar resistiu o quanto pôde ao convite da governadora Roseana Sarney (PMDB), naquele momento figura de projeção nacional e nome já falado para disputar a sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso no ano seguinte. A presença de Ferreira Gullar em São Luís para receber uma homenagem tão expressiva somaria pontos importantes no projeto presidencial que, para desagrado da turma que cercava FHC, começava a ser gestado no Palácio dos Leões. Gullar, que em algumas situações pareceu simpatizar com o projeto, fez um esforço gigantesco, sufocou o medo de avião e desembarcou em São Luís, participou entusiasmado da festiva inauguração, que foi notícia nacional com algum destaque. Meses depois, porém, para espanto do poeta e de todo o país, o projeto presidencial de Roseana Sarney foi dura e cruelmente atropelado e desmontado pela Operação Lunus. A Avenida Ferreira Gullar foi esquecida pelos governos que se seguiram e também pelas administrações municipais, parecendo hoje uma pálida sombra do que foi inaugurado há 15 anos. A Coluna nunca soube o que Ferreira Gullar pensava de tudo isso.
São Luís, 05 de Dezembro de 2016.