José Sarney marcou sua trajetória política pela força das palavras. Os incontáveis discursos do político mudaram o curso da história do Maranhão e foram decisivos para que o Brasil saísse das trevas da ditadura militar e voltasse ao sol pleno da democracia. Suas palavras guiaram o movimento político que liderou no Maranhão desde 1965, foram importantes para o Brasil nos seus primeiros 14 anos como senador e ajudaram a nortear o país na volta ao mundo democrático, e foram o fermento da força política que o levou à presidência da República, assim como tiveram importância destacada nas mais de duas décadas da sua atuação efetiva e influente como senador da República e duas vezes presidente do Senado e do Congresso Nacional já como ex-presidente. Entraram para a História discursos como o da sua posse na presidência da República, em 15 de março de 1985, sob a imensa pressão de assumir no lugar de Tancredo Neves, e o da sua posse como membro da Academia Brasileira de Letras, que calou grande parte dos seus críticos.
Nesse amplo contexto histórico, provavelmente nenhum dos discursos de José Sarney foi mais denso, rico e oportuno do que o que fez no dia 25 de setembro de 1985, há 38 anos e oito meses, portanto, ao abrir a 40ª Assembleia Geral das Nações Unidas, e que se eternizou com o título de “Sentimento do Mundo”, um mosaico amplo e colorido daquele momento importante da História contemporânea. Lastreado pelo privilégio de ser o chefe do Estado brasileiro quem abre a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o presidente José Sarney falou ao mundo numa situação muito especial. Naquele dia, a ONU, criada em 1945 para buscar a paz, unir os povos e preservar o homem após duas guerras apocalípticas, completava 40 anos, num cenário global de muitos e graves problemas geopolíticos e sociais – como guerra e fome. Ao mesmo tempo, havia em 1985 um ambiente de otimismo, com o fim do colonialismo e de muitos regimes de força, ditatoriais, e o limiar de uma era em que a democracia ganhava espaço nos mais diversos continentes, em especial na América Latina. E nesse cenário, o Brasil se movimentava como o grande exemplo de transição de uma ditadura militar para a democracia plena sem derramamento de sangue. O mundo estava, de fato, mudando para melhor, ainda que sob forte tensão.
Aos 55 anos de idade e seis meses após assumir o comando efetivo do País, com o currículo de deputado federal, governador do Maranhão, senador, eleito vice-presidente da República na chapa liderada por Tancredo Neves e tornado presidente com a morte do líder, e com o brilho de escritor consagrado, José Sarney ocupou a tribuna da Assembleia Geral da ONU com três propósitos ambiciosos, na verdade desafios gigantescos. Primeiro mostrar ao mundo que o Brasil estava, de fato, de volta ao concerto das nações democráticas. Segundo convencer o mundo de que ele foi o homem certo, no lugar certo e na hora certa para comandar a transição diante da tragédia política que foi a morte do presidente eleito Tancredo Neves. E, terceiro, diante de ouvintes atentos, principalmente os representantes do chamado Terceiro Mundo e dos países em desenvolvimento, dizer ao planeta que o Brasil entrava numa nova era. Ele deu o recado surpreendendo a todos com um dos discursos mais fortes e importantes entre os muitos pronunciados naquela assembleia e muitos outros feitos antes e depois por líderes diversos. Sua fala desenhou um país independente e determinado a ser ouvido.
José Sarney começou se solidarizando com o México, devastado naqueles dias por um terremoto que matou milhares e destruiu parte do País. “Tenho nos olhos o sofrimento do México. Posei naquela terra para ver a tragédia. Ver e levar a solidariedade. Levar também o sentimento do Mundo”. E destacou em seguida: “Esta tribuna impõe respeito e dignidade. É a mais alta da comunidade das nações, onde grandes e pequenos ficam menores”. E registrou: “Há quarenta anos tem o meu país o privilégio de abrir o debate Geral da Organização das Nações Unidas. É com trêmula emoção que exerço essa prerrogativa. Pesam-me graves problemas, responsabilidades imensas”.
Mais à frente, José Sarney fez algo extraordinário: invocou o intelectual e o uniu ao político e colocou a poesia na sua reflexão de estadista. E o fez levando a cultura maranhense para o epicentro do mundo ao recorrer a versos do poeta Bandeira Tribuzi como base para reflexão, apresentando-o a todos os continentes ali representados: “Recorro a versos do maior poeta de minha terra para definir minha emoção: ´Que tempo de viver-se!` ´…Que sonho raro será mais puro e belo do que esta viva máquina do Mundo?` E seguiu em frente falando da relação da literatura com a política e definindo o Brasil como o resultado de uma fusão cultural excepcional: “O Brasil dos vários Brasis, em que a opulência e a pobreza, o árido e o fértil, a seca e a inundação fazem uma geografia de amostragens opostas, abrigando num vasto continente um povo unificado, que soube construir uma democracia racial, e uma unidade de cultura que é a força do seu destino”.
Num dos grandes momentos do seu discurso, José Sarney fala da transição da ditadura militar para a democracia, mostrando-se o chefe de Estado equilibrado, o político pragmático e o humanista avesso a confrontos: “O Brasil acaba de sair de uma longa noite. Não tem olhos vermelhos de pesadelo. Traz nos lábios um gesto aberto de confiança e um canto de amor à liberdade”. “(…) O instrumento da nossa viagem do autoritarismo para a democracia foi a nossa capacidade de conciliar (…). Nossa determinação, coragem e resignação foram tão fortes que suportamos a perda de nosso herói, Tancredo Neves (…)”. E fechou: “Mais forte do que a morte foram os valores da mudança”.
Ao longo de mais de trinta páginas, o presidente do Brasil prendeu a atenção das mais de 200 delegações presentes na abertura da 40ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas saudando a volta da democracia com a queda dos regimes ditatoriais e o fim do colonialismo. Ele externou seu horror ao racismo, colocando seu governo na linha de frente contra o apartheid; pregou forte posição a favor da emancipação da mulher, também se alinhando a essa atitude; firmou um amplo e equilibrado posicionamento sobre os confrontos de então, em especial o conflito árabe/israelense, defendo enfaticamente a construção de um estado palestino; fez uma longa e bem fundada carga contra a dívida externa, que era bicho papão naquele tempo, pois sufocava países e impedia o desenvolvimento global; defendeu o desenvolvimento científico como o caminho mais eficaz para resolver os problemas básico do homem; fez uma longa e consistente defesa da Paz, cobrando, com ênfase, o fortalecimento da ONU; e pregou a liberdade como o mais importante bem e direito humano, como previu a Declaração dos Direitos do Homem, o principal fundamento existencial da ONU.
“Sentimento do Mundo”, escrito pelo próprio José Sarney – sem o auxílio de assessores – para comemorar os 40 anos da ONU, foi também um grande alerta com o que poderia acontecer ao mundo no campo político, nas relações internacionais, nas relações sociais e na difícil convivência do homem com o meio ambiente nos anos seguintes. Em mais de um trecho da sua fala, o presidente do Brasil previu que o não fortalecimento da ONU e o não ajustamento das relações entre os povos poderia levar à fragilização da democracia, ao desmantelamento de instituições fundamentais e ao risco de uma era de obscurantismo. O 11 de setembro com a derrubada das torres gêmeas nos EUA, a invasão da Ucrânia pela Rússia, o ataque ao Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, motivado por uma tentativa do presidente derrotado Donald Trump de fraudar uma eleição presidencial norte-americana, e o 8 de janeiro de 2023 no Brasil confirmaram seus temores.
O discurso “Sentimento do Mundo” é uma peça de oratória que reflete um dos momentos de grande importância para História do nosso tempo. Ele nos dá reflexões maduras sobre democracia, liberdade, paz, guerra, natureza, passado, presente e futuro.
Em Tempo: “Sentimento do Mundo” foi publicado em outubro de 1985 como um tomo da Coleção Cinco Pontos, da Presidência da República, numa edição bilíngue (português/inglês).
São Luís, 26 de Maio de 2024.