Massaud Moisés, no seu prestigiado “Dicionário de Termos Literários”, define crônica como uma modalidade literária imprecisa, “sujeita ao transitório e à leveza do Jornalismo”, e um “lugar geográfico entre a poesia e o conto”, concentrada num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do autor. Crônica, portanto, não tem medida e estrutura amarrada, não sendo também monopólio de ninguém. Daí ser comum um jornalista cronista, como também um cronista saído de outros campos do conhecimento, como, por exemplo, das rígidas e circunspectas fileiras da magistratura. Em todos os vieses que alcança, a crônica mostra, por exemplo, que é possível um juiz de carreira, com sólida formação em juridiquês, usar as palavras para se comunicar com o mundo pela via da leveza. E às vezes com talento para comentar temas os mais diversos num padrão de linguagem simples, direta, sem rebuscamento nem vulgaridade. Foi o que alcançou o desembargador Lourival Serejo nas 90 crônicas do seu “Mistérios de uma Cidade Invisível” – Edições AML 2019.
Existem cronistas geniais que se “escondem”, dizem o que querem sobre fatos e personagens, falando ou não em primeira pessoa, sem entrar na trama, caso de José Chagas e José Weverton Neto. Há cronistas, igualmente talentosos, que, num outro extremo, se expõem quase que como personagem central do assunto, ainda que sejam apenas o narrador-comentarista do acontecimento, como fizerem Oliveira Ramos e Ubiratan Teixeira. Existem, enfim, cronistas que via de regra são parte do tema abordado, mas evoluem na abordagem de modo a não prejudicar o protagonismo de terceiros, a exemplo de Nonato Masson e Humberto de Campos. O cronista Lourival Serejo se enquadra com precisão no último caso.
Em “Mistérios de uma Cidade Invisível” ele é o cronista perfeitamente situado no seu tempo, que se informa de tudo o que acontece de relevante em São Luís, no Maranhão, no Brasil e no mundo. E trata com a mesma preocupação, destrinchando causas e efeitos, um episódio de violência por questões agrárias no interior do estado, e uma manifestação de estudantes nas ruas de Paris por mais liberdade e contra a corrupção nas instituições francesas. Os temas que submete ao seu crivo analítico vão desde as grandes questões e fatos do seu tempo – que começa para valer nos anos 50 -, como as distorções da política, o desprezo à ética, os crimes da corrupção, os ataques à democracia, as liberdades civis, o alcance da religião, o rigor da sua fé católica, a paixão pelo livro e pela música, o apreço por hobbies como a filatelia, as suas memórias da infância em Viana, o carnaval daquele tempo, a carta anônima e uma adoração por São Luís, a cidade da sua adolescência e da sua maturidade que, além de muita história, guarda mistérios invisíveis, que no seu entendimento, só os poetas são capazes de perceber.
Nesse fascinante universo temático, no qual se misturam crueza e poesia, Lourival Serejo vai da indignação, passando pela satisfação, a um flerte com a intolerância. Quando os temas são a ética e a verdade, ele não faz concessões: é o magistrado implacável, que decide na letra da lei, ainda que às vezes criticando-a. Quando fala em política, mostra sua formação democrática, convicto de que a democracia mantida pelo voto ainda é a garantia de uma sociedade livre e aberta, revelando também, em pinceladas, que chegou a essa compreensão depois de haver flertado com visões avançadas no campo da esquerda. E se o tema em foco é religião, o cronista Lourival Serejo exibe toda a sua fidelidade aos postulados da Igreja Católica Romana, que atualiza estudando as bulas papais. Mas é como católico que se mostra conservador ao ponto de confrontar abertamente uma ONG gaúcha que entrou na Justiça contra o uso de crucifixo em sala de julgamento, um espaço público, alegando que o estado brasileiro é laico. Lourival Serejo critica a iniciativa com o insustentável argumento segundo o qual, mais do que um ícone religioso, o crucifixo é visto na cultura ocidental como um símbolo da ética e da justiça.
Com exceção da 90ª, intitulada “Crônica sem assunto”, esta reveladora do pendor literário do cronista, todas as demais de “Mistérios de uma Cidade Invisível” registram situações, atos, fatos e casos e que podem ser vistos como o retrato de um momento. Não sem razão a crônica de abertura é “Agora é a vez da ágora”, na qual registra a indignação de estudantes e jovens franceses inspirados no livro “Indignai-vos”, lançado pelo pensador Stéphane Hessel, aos 93 anos, que num trecho diz o seguinte: “A pior das atitudes é a indiferença”. Ao mesmo em que relata as agruras dos moradores da Casa do Estudante Universitários, na Rua de São Pantaleão, com as dificuldades para sobreviver sem dinheiro e com os assédios dos esbirros da ditadura, que viam na morada um ninho de “comunistas”, ele recorda os estragos da Guerra do Vietnã, lembra que ouviu os Beatles e Pink Floyd. E recorda que além de política, os residentes também falavam de poesia, principalmente, quando a Casa recebia a visita do então jovem poeta Valdelino Cécio, que viria a ser um dos maiores agitadores culturais de São Luís. Registra que visitou Nova Iorque e Havana, e fez clara opção pela capital cubana, sem desmerecer o fascínio nova-iorquino. Quando falou da ditadura militar, concluiu apontando a mediocridade e a paranoia do regime de força, também por ele acusado de haver assassinado culturalmente toda uma geração. Nesse sentido, Lourival Serejo se mostra um intelectual engajado, com uma vasta compreensão dos avanços da História e da cultura e com uma visão coerente sobre o mundo atual.
Num outro plano, o cronista revela uma paixão incontida por São Luís. Ela vem à tona nos registros de sua chegada, vindo de Viana, outra paixão incontida, e da vida que levou para concluir seus estudos e alcançar a universidade, o que conseguiu. Em diferentes textos, o magistrado que se tornou imortal, fala da São Luís dos anos 60 e 70 como uma cidade mágica, encantadora, que tinha a Praça João Lisboa como seu coração pulsante e onde as pessoas se encontravam, se cumprimentavam, formavam rodas de conversa e discutiam política a futebol. Ao longo do tempo, ao penetrar nas reentrâncias da cidade, nos seus segredos e nos seus mistérios, cujas pistas encontrou na história e na literatura, o cronista Lourival Serejo se deu conta de que nas entranhas dos casarões e no lastro das pedras de cantaria existe uma cidade invisível, só percebida pelos poetas que foram fundo na tentativa de compreendê-la.
Na crônica “Mistérios de uma Cidade Invisível”, ponto alto do livro, numa busca refinada e apurada por respostas, Lourival Serejo foi atrás dos mistérios da São Luís invisível nos versos dos poetas que até aqui cantaram melhor e mais profundamente a cidade que, tem certeza, existe, mas não se mostra. Garimpou e encontrou pistas em Ferreira Gullar (“Estou rodeado de mortos./Defuntos caminham comigo na saída do cinema./São Muitos,/sinto a presença viva das magnólias/queimando o seu próprio aroma), em Luiz Augusto Cassas (“Talvez encontreis por aqui:/ os pastéis do Moto Bar; a avareza do Serafim; a visão tridimensional de Zuzu Nahuz; a nota estridente [na alma] do pistom do cego João; as grossas sobrancelhas de Rubem Almeida; a ressaca de Erasmo no abrigo), em Nauro Machado (“Todas as noites, por toda a cidade/ouve um ribombar de fim-de-mundo…”), em Bandeira Tribuzi (“Quem conhece as noites de lua/ e o mistério que ocultam vário,/ já divisou como no espelho da cidade o passado é claro…”), em Manoel Lopes (“Os que te viram/ estão além das tuas torres e dos oitões/ batidos de sóis e de luares…”) e em José Chagas (“Os mirantes todos têm um segredo/que não chega aos ouvidos de ninguém” e ainda “O eco das paredes traz ainda longínquas vozes imemoriais”). E fecha a crônica maior do livro afirmando que, depois de ouvir os poetas, não tem mais dúvidas de que existe outra São Luís.
Longe do esmero e da linguagem rebuscada, mas sem nada a dever a grandes cronistas maranhenses, Lourival Serejo é um cronista de proa, e seu “Mistérios de uma Cidade Invisível” é uma coletânea para ser lida por quem quer compreender o nosso tempo.
Em Tempo: A bela capa de “Mistérios de uma Cidade Invisível” foi concebida pelo artista gráfico Eduardo Salles com base numa obra do genial artista plástico maranhense Jesus Santos.
São Luís, 14 de Julho de 2023.