Fevereiro de 1980. Há 40 anos, quando o Maranhão começava, de fato, a perceber que sua cultura popular era forte, rica e singular e guardava também as bases do que viria ser um cancioneiro de riqueza extraordinária, um grupo de compositores, instrumentistas e interpretes produziu Pedra de Cantaria, um disco que se tornou, ao longo dos anos, um marco e um dos principais traços da identidade do que viria a se consolidar como Música Popular Maranhense (MPM). Joias preciosas do atual cancioneiro popular de uma terra que respira poesia, as suas 11 faixas são obras-primas dos gênios musicais de Chico Maranhão, Ubiratan Sousa, Sérgio Habibe, Josias Sobrinho, Zé Pereira Godão, Giordano Mochel e Adler São Luís, ricamente embaladas pelos arranjos magistrais de Marcelo Carvalho, Ubiratan Sousa, Josias Sobrinho e Sérgio Habibe, e expressados pelos violões de Ubiratan Sousa e Hilton Filho, pelas flautas comoventes e contagiantes de Sérgio Habibe e Zezé da Flauta, pelo acordeão preciso e provocador de Marcelo Carvalho, pela viola forte de Omar Cutrim, pelo cavaquinho disciplinado de Beto Pereira e pela competente e motivadora percussão de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico. É como se todos estivessem fazendo também uma declaração de amor a São Luís, não a única, mas a grande musa da obra.
Pedra de Cantaria é muito mais que um belo disco, pois é a voz de uma geração de jovens talentosos e decididos a dar uma identidade musical ao Maranhão. Ele nasceu do idealismo do saudoso poeta e agitador cultural Valdelino Cécio e da militância musical do então já consagrado Chico Maranhão, que cientes do potencial da MPM gestada na era dos grandes festivais e que começava a seguir por outras trilhas, buscando identidade no bumba-meu-boi nos diversos sotaques, no tambor de crioula, nas toadas do Lelê e nas ladainhas do Divino Espírito Santo, no singrar das bianas e na majestade dos casarões coloniais de São Luís, conceberam o “Projeto Guriatã” e conseguiram viabilizá-lo pela Fundação Cultural do Maranhão em convênio com a Funarte. Aquela música precisava de registro. Sua qualidade ia muito além da média do que naquele tempo se fazia em matéria de música popular nas diversas regiões do País. Na visão de Valdelino Cécio, os produtores e as grandes gravadoras do País, então concentradas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, precisavam saber o que estava acontecendo no Maranhão, em especial em São Luís, em matéria de produção musical.
O esforço se justificava plenamente, porque Pedra de Cantaria nada fica a dever a qualquer disco que naquele momento representou o regionalismo musical. A beleza de “Verônica”, de Chico Maranhão e angelicalmente interpretada por Glória Corrêa, que abre o disco, é superior, tanto em poesia quanto em melodia. “Terra de Noel”, de Josias Sobrinho ajudou a desatar a linguagem do samba no Maranhão, assim como o protesto de “São Francisco”, de Zé Pereira Godão, e o comovente alerta para a destruição das nossas raízes, feito em “Olho D`Água”, de Sérgio Habibe, e ainda a beleza de “Baltazar”, de Giordano Mochel são frutos de um momento de transição – a ditadura perdia força e a democracia começava a ensaiar retorno -, mas que se encaixam perfeitamente na realidade atual.
O disco também registra o grito ecológico de Josias Sobrinho em “Porco Espinho”, o sedutor e sofisticado poema-canção de “Voo Nupcial”, de Ubiratan Sousa e Souza Neto, o desenho poético-sensual de “Situba”, de Giordano Mochel, a força do bumba-meu-boi no baião-toada de Adler São Luís e Valdelino Cécio, na força histórica e simbólica das ruínas de Alcântara em “Cavalo Cansado”, de Sérgio Habibe, e finalmente no comovente e apoteótico Bandeireiro do Divino, de Ubiratan Sousa e Souza Neto.
Pedra de Cantaria é um disco singular. Os arranjos que adornam as 11 faixas e a precisão da base instrumental – toda em cordas de violão, viola e cavaquinho, em acordeão e sopros de flauta, sem recursos eletrônicos nem metais – ganham dimensão quando se sabe que, sob a direção de Chico Maranhão, foi gravado em apenas cinco dias, em regime de mutirão, com os músicos se revezando em cada faixa num pequeno estúdio em Belém, no Pará. Se levados em conta o aperto orçamentário e as circunstâncias da gravação, o resultado é excelente, o que torna o disco, mais que um registro musical necessário e oportuno, uma conquista de um grupo de craques que juntaram força e talento para tornar realidade um projeto idealista. Tudo com o propósito cultural de mostrar ao País a MPM que ganhava forma naquele tempo. E também com a pretensão de “forrar as ruas, as praças e avenidas do coração de quantos porventura nos ouçam”, como escreveu o poeta Valdelino Cécio, dono de boa parte dos créditos da obra.
Pedra de Cantaria é, em resumo, um disco para o maranhense – e que mais interessar possa – ouvir pensando nele próprio, na sua história, nas suas raízes, nas suas emoções, nos seus amores, nas suas lembranças e nas suas lutas, certo de que encontrará um pouco de cada coisa nas músicas que abriga.
As faixas
1 – “Verônica” é uma prece musicada, uma oração cantada, de beleza extraordinária, que expressa o que há de melhor no gênio musical e poético de Chico Maranhão, e traduz um viés forte da MPM naquele momento em que a ditadura começava a ruir e os lampejos da democracia começavam a cintilar. Metáfora da Verônica das inesquecíveis procissões do Senhor Morto, que chorava a morte de Cristo em latim, a Verônica de Chico Maranhão viaja nas campinas dos perizes, “onde ronca o trovão”, e convoca os homens para o que diz ser o tempo de contar as histórias, não do reino dos céus, mas do reino sebastianista de umas areias que “ficavam no caminho da estrela de Belém”. Adornada por belos, comoventes e ajustados arranjos executados pelos violões precisamente dedilhados de Hilton Filho e do próprio Chico Maranhão, e pelas intervenções oportunas e bem dosadas do piano de Marcelo Carvalho – que responde pelos adornos -, a oração de Chico Maranhão ganha força e pureza plena na voz límpida, angelical e despretensiosa de Glória Corrêa, complementada pelo coro formado por Chico Maranhão, Hilton Filho, Marcelo Carvalho, Ubiratan Souza e Valdelino Cécio. A versão dá à Verônica maranhense uma dignidade singular, justificando perfeitamente a posição de abertura em Pedra de Cantaria.
2 – “Terra de Noel”. Nenhuma das muitas versões desse samba que colocou o genial Josias Sobrinho no patamar que hoje ocupa na MPM traduziu melhor o espírito e a beleza do que essa faixa de Pedra de Cantaria. Expressão afoita de manifesto dentro da realidade cultural, social e política de uma época em que as luzes democráticas começavam a vencer as trevas ditatoriais, o samba audacioso e provocador de Josias Sobrinho se encaixa perfeitamente no discurso da liberdade de pensar e de escolher, sem se apegar a rótulos, indo buscar suporte na memória superior de Noel Rosa. E fecha o discurso reivindicando o direito de ser consciente da situação, independente de qual seja o contexto. Na versão de Pedra de Cantaria, “Terra de Noel” ganhou a melhor de todas as embalagens em matéria de arranjo. Foi envolvido com um “duelo” harmonioso, vigoroso e competente do violão de sete cordas do mestre Ubiratan Souza e do violão básico do próprio Josias Sobrinho com o acordeão solto e debochado de Marcelo Carvalho e das evoluções inquietas da flauta de Zezé, tudo corretamente arbitrado pelo cavaquinho de Beto Pereira e cadenciado pela percussão disciplinada e envolvente de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico. Tudo isso com um detalhe absolutamente relevante: com sua voz única, inimitável, Josias Sobrinho – que também assina os arranjos – nunca cantou “Terra de Noel” com tanta emoção.
3 – “Baltazar”. Uma das joias do rico repertório autoral de Giordano Mochel, um dos grandes nomes da MPM nos anos de resistência, sempre voltado para o que há de essencial da cultura maranhense, a canção desenha imagens que mostram a relação de São Luís com o mar que a cerca e a tornou ímpar. O poema musicado de Giordano Mochel fala das chegadas e partidas de bianas na Baía de São Marcos, registradas pelas varandas dos casarões da Beira-Mar, como que uma pintura de aquarela. Bem interpretada pelo próprio Giordano Mochel, que faz as duas vozes e também responde pelo violão base, “Baltazar” foi arranjada pelo mestre Ubiratan Souza, que executa com igual maestria os adornos de viola e de bandolim em harmonia perfeita com a flauta genialmente emocionada de Sérgio Habibe. É música para ouvir de olhos fechados e sonhar viajando na proa de uma biana sentindo a brisa de São Marco.
4 – “São Francisco”. Trata-se de um baião monumental de autoria do craque Zé Pereira Godão, que, quase como uma crônica, narra a realidade dos desvalidos, chamados “heróis brasileiros” que chegam à Ilha movidos pela esperança de dias melhores, deslumbrados com o sol das praias, mas logo enquadrados numa realidade cruel de sobrevivência difícil, de desmantelos e no dilema do guerreiro que “paga a desgraça com forte sorriso de amor”, mas que “se corre pega desarma, se fica paga-a com a dor”. Um discurso político bem encaixado naquele momento, quando a arte reforçava seu enfrentamento com a ditadura. Bem interpretada na voz do próprio Zé Pereira Godão, o baião ludovicense é embalado pelas cordas do vilão de mestre Ubiratan Souza, do contundente solo de viola de Omar Cutrim e da base forte do cavaquinho de Beto Pereira, também pelos acordes do acordeão forte e nordestino de Marcelo Carvalho e corretamente ritmado pela percussão bem armada de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico. O discurso de Zé Pereira Godão continua traduzindo fielmente a realidade social.
5 – “Olho D`Água”. Composta no final dos anos 70, quando o ideário preservacionista era ainda embrionário, a canção de Sérgio Habibe e Hilton Filho é um grito agudo contra a destruição da natureza e das culturas indígenas ancestrais. Uma poesia forte, lembrando que por aqui olhos d`água “choravam”, o olho de boi “segredava na areia” e “cada palmeira era um índio”. Interpretada no tom certo de lamento por Hilton Filho, com intervenções eventuais de Sérgio Habibe é um manifesto. Além da letra, cuja mensagem surpreende pela atualidade após quatro décadas e uma virada de século entre elas, “Olho D`Água” emociona por um arranjo feliz, que se encaixa precisa e totalmente à letra, com as flautas de Sérgio Habibe e Zezé dominando em duas vozes e dando força ao tom dramático do lamento, sustentadas por uma base de violão dedilhado por Hilton Filho. Tudo ordenado por uma percussão simples e primorosa de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico. Música para ouvir e refletir numa época em que ainda se assassina líderes indígenas.
6 – “Cavalo Cansado” é um dos grandes momentos da genial, vasta e bem construída obra musical de Sérgio Habibe, que marca com ela o fim da era dos grandes festivais, nos quais pontificou como um dos grandes nomes, para ingressar integral e definitivamente na MPM. É uma declaração de amor às avessas a Alcântara, cansado de esperar vigiando suas portas e ruínas que lembram um rei que nunca chegou. Daí a pergunta angustiada sobre quem colonizou no peito este sonho, que não tem fim. O poema de Sérgio Habibe é envolvente e revelador de uma relação apaixonada, que se manteve firme e o trouxe de volta depois de navegar por outras terras. Interpretada pelo próprio Sérgio Habibe no ritmo de uma balada forte e intensa, e por ele próprio arranjada, a música ganha fluidez numa densa e perfeita base de dois violões em completa harmonia, um do próprio autor e outro de Hilton Filho. O adorno melódico é fortemente enriquecido pelas belas evoluções da flauta de Zezé e pela cadência precisa e adequada da percussão de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico. É uma peça que comove a cada audição.
7 – “Porco Espinho” – Joia brilhante do acervo produtivo de Josias Sobrinho, a faixa é baião arrochado, que abriga uma metáfora típica dos tempos de chumbo político. Um belo poema, que começa indagando “Que que tem passarinho encantado no meu coração?” E evolui sugerindo que “tem gente querendo virar bicho, macaco, mambira e coisa e tal”, e dá sequência provocadora referindo-se ao que pode ter numa mata, que pode estar abrigando de cachorro a cobra grande. E avisa: pode desenterrar a gaiola. Em “Porco Espinho”, Josias Sobrinho reafirma sua veia de letrista que junta com perfeição a realidade com o surreal num jogo de palavras sempre audacioso e às vezes desconcertante. Arranjado pelo próprio Josias Sobrinho, esse baião dos bichos é embalado pela competente percussão de Manoel Pacífico, e adornado pelo forte acordeão de Marcelo Carvalho e pelos acordes de viola do talentoso Omar Cutrim, animado ainda pela flauta de Zezé. É tão atual quanto no tempo em que foi gestado.
8 – “Voo Nupcial” – A canção é um poema de Souza Netto genialmente musicado pelo mestre Ubiratan Souza. Construído numa linguagem culta, o português casto, o poema se refere a uma noite de amor que usa expressões como um beija-flor, que num gesto de amor “voluteia grácil pelo ar”, para dizer que a vê bailar “num gesto natural de amar”. E prossegue afirmando que, depois de inebriar todos os sentidos, a define como o “cinzel do artífice-maior”, “o estrato mais sutil do amor-perfeito”, para arrematar afirmando que “o simples desejo é fogo-fátuo singular”, e por aí vai. Bem interpretado pelo mestre Ubiratan Souza, o poema-canção ganhou um arranjo adequado pela base de cordas nos violões do próprio Ubiratan Sousa e de Hilton Filho e pelo belo e bem afinado dueto feito pela flauta intensa de Sérgio Habibe e pelo acordeão competente de Marcelo Carvalho. Para ouvir de olhos fechados e viajando.
9 – “Alegria da Ilha” – A letra é da lavra de Valdelino Cécio, poeta de mão-cheia e arraigado às raízes da cultura popular maranhense, especialmente o bumba-meu-boi. Musicada por Adler São Luís, que também lhe dá voz, a faixa começa como um baião e termina como uma toada no sotaque de matraca. Nela, Waldelino Cécio externa sua paixão incontida pelo mais importante e exuberante folguedo maranhense, logo de cara avisando que se trata de um boi valente, que “esturra até o sol raiar”, e que “traz matraca e maracá”. Destaca o caboclo de pena de Axixá, para desaguar no refrão “É boi, bumba/meu/boi. Meu boi bumbá”. E no final, uma virada surpreendente: mergulha no sotaque de matraca perguntando à negra Catirina onde o povo alegre se escondeu. Arranjado por Adler São Luís, esse baião-toada é adornado pelo violão base do próprio arranjador, pelo violão sete cordas do mestre Ubiratan Sousa e pela viola de Omar Cutrim, aos quais se junta o acordeão de Marcelo Carvalho, tudo ritmado pela percussão de Arlindo Carvalho e pela participação de um coral formado por Valdelino Cécio, Adler São Luís, Zé Pereira Godão, Ubiratan Sousa e Manoel Pacífico.
10 – “Situba” – Uma bela canção de Giordano Mochel. O poema desenha uma morena a partir da ideia de um brejo, onde predominam as palmeiras de buriti em meio a pés de canarana e aves como aguim. E também rios, peixes como mandi e bianas partindo para o mar. Fala também da mata, do pio do japi e do jeito do saci. E recorre à magia da varinha de condão para abrir o coração da linda morena, para entrar na sala do seu peito. Interpretada pelo próprio Giordano Mochel, que faz o violão base, “Situba” tem arranjos do mestre Ubiratan Sousa, que também cuida do violão solo e das intervenções de viola, e o reforço discreto e bem ajustado do sempre eficiente acordeão de Marcelo Carvalho. O diferencial da embalagem é a percussão intensa e bem armada de Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico.
11 – “Bandeireiro do Divino” – Uma das mais belas homenagens a São Luís e à festa do Divino Espírito Santo que se cultiva na Ilha, o poema de Souza Neto musicado e interpretado pelo mestre Ubiratan Sousa em ritmo de caixas é um marco na MPM. Como um roteiro da festa, atende a um convite para cantar no salão de São Luís, o Divino de Souza Neto protagoniza o bandeireiro, que lidera o grupo – imperador, imperatriz, mordomos régios e damas – carregando a bandeira vermelha com uma pomba branca ao centro, e as caixeiras, figuras centrais que dão a força simbólica e rítmica à ópera popular que é o Divino Espírito Santo. Além de uma interpretação forte, fazendo várias vozes, Ubiratan Sousa brindou o poema com um arranjo perfeito, unindo o seu próprio violão às caixas rufadas com força e elegância por Arlindo Carvalho e Manoel Pacífico, ao que se somam adornos melódicos da flauta de Sérgio Habibe e do acordeão de Marcelo Carvalho. Música para ouvir e não esquecer.
São Luís, 04 de Abril de 2020.
Correa, que resgate precioso este que você faz deste álbum, um dos fundamentais da construção poético musical maranhense. Feito por alguém que acompanhou de perto essa aventura cultiral, se consfigura como um documento guia para quem mais se aventurar por caminho esse, fábula única. Obrigado.
Brilhante, Consistente , oportuno e necessário o resgate desta pérola da M.P.M. É prazeroso conhecer a rica história da nossa música. Parabéns Correia !!!! Gostaria de saber onde posso conseguir alguns exemplares, PARA presentear amigos,
Tenho esse disco há décadas. Maravilhoso realmente, traz canções de parte de nossos grandes compositores. Parabéns pelo indispensável resgate!
Fiz a leitura do artigo em “pedaços miúdos” para não terminar logo. Grato pelo mergulho na História da nossa refinado MPM.