ESPECIAL: “Província, o pó dos pósteros”, uma visão densa e diferenciada da vida cultural de São Luís na rica prosa do poeta Nauro Machado

 

A Praia grande e Nauro Machado às vezes se confundiam, porque um era parte do outro, como mostra “Província”

Muito já se falou e escreveu e muito ainda se falará e escreverá sobre a genial, densa, vasta e desafiadora obra poética de Nauro Machado, já consagrado como poeta de estatura universal e incluído, sem favor, entre os grandes da língua portuguesa, sobretudo pelo pleno domínio da língua. O indiscutível gigantismo do poeta eclipsa quase inteiramente o Nauro Machado prosador, escondendo de muitos um escritor excepcional, articulista de ponta, cronista de escol, dono de uma linguagem rica, culta, reveladora de um absoluto respeito pelo idioma e com um talento superior para traduzir em palavras a realidade à sua volta, em especial a memória da sua existência, como está consagrado no monumental “Província, o pó dos pósteros”, publicado em 2012, três anos antes da sua partida em 2015. O livro reúne mais de uma centena de artigos publicados ao longo de três décadas na imprensa de São Luís (O Estado do Maranhão, O Imparcial e Jornal Pequeno), além de alguns prefácios, orelhas e resenhas literárias. Os textos, além de terem o próprio poeta como epicentro e São Luís como o seu universo, formam um registro amplo e precioso da vida cultural da cidade, especialmente no campo poético, ao longo de seis décadas – dos anos 1950 aos anos 2010 -, período que coincide com a existência ativa do próprio autor.

“Província” é um atestado de que, contrariando os teóricos da comunicação fácil e medíocre, o Nauro Machado prosador não faz concessões no uso na língua portuguesa. Ele prefere a norma culta, sem modismos, começando pelo uso amplo do nosso rico acervo vocabular e das regras verbais, por exemplo. Por causa da sua riqueza idiomática, a prosa de Nauro Machado parece às vezes rebuscada, como muitos veem sua poesia, mas a verdade é que nela está o uso correto das palavras, a precisão dos seus significados – quem ousa nos dias atuais usar palavras como primevo, algures, avoengo, álgida, palustre, soez, crístico, ditirâmbico e deambulação? O livro mostra que, quando lido com atenção, o texto de Nauro Machado, além do excepcional conteúdo informativo e da sua honesta e franca impressão sobre fatos e pessoas, ganha a forma de um manancial de palavras que traduzem as situações descritas com a mais absoluta abrangência. Ou seja, às vezes com aparência gongórica e até arrogante, a prosa de Nauro Machado se comporta, na verdade, como guardiã do resultado de um hercúleo e saudável esforço para preservar a integridade da língua-mãe. E mais ainda: em meio a frases duras, cortantes e implacáveis, mas cuidadosamente elaboradas, surgem manifestações que são pura poesia num ambiente textual em que raramente faz, por exemplo, concessão ao humor.

Escritas dentro das mais severas regras da língua, e sem dar qualquer espaço à mediocridade, as mais de quatrocentas páginas de “Província” guardam dois tesouros. O primeiro é o registro do que aconteceu de essencial – poesia, artes plásticas, teatro e cinema – em mais de meio século na cultura do Maranhão, com eventuais traços de crônica política. O segundo é como o poeta Nauro Machado, com sua boêmia, seu desprezo pelo formalismo castrador, seus momentos de inferno e de paraíso, conviveu com aquela realidade – concursos literários, academia, lançamentos -, começando pela cidade de São Luís, sua musa, seu universo, onde conviveu com anjos e demônios.

Nas páginas de “Província”, o prosador Nauro Machado se define como poeta por paixão, profissão e razão de viver. E fala de poesia com a profundidade de um filósofo, a severidade de um crítico, a habilidade de um artesão, a precisão de um cientista e o conhecimento de um filólogo. Tanto que em seus artigos não trata de nada relacionado com a prosa. Já em relação à poesia, revela uma ampla e notável cultura poética, expressando-se com pleno domínio crítico e com espantosa intimidade, por exemplo, sobre a poesia dos conterrâneos Bandeira Tribuzi, Lago Burnet, Odilo Costa, filho, Ferreira Gullar, Luiz Augusto Cassas, Manoel Caetano Bandeira de Mello, José Chagas, Déo Silva, Chagas Val, de nacionais como Manoel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Moacir Félix, e de universais como Fernando Pessoa, Marlamé, Rimbaud, Rilke, Garcia Lorca, Pound, Pablo Neruda e César Vellejo, e por aí vai.

Em “Província”, movido pelo sentimento e a sensibilidade do poeta e o talento de prosador, Nauro Machado resgata personalidades literárias, artísticas e culturais fora da curva no seu tempo. É o caso, por exemplo, do respeitado jornalista, poeta e escritor Bernardo Almeida, com quem teve uma relação de irmão e a quem dedica dois artigos definitivos. Traça perfis honestos e emocionados do artista plástico e amigo de farra Antônio Almeida, do poeta e jornalista Odylo Costa, filho, revelando que ele foi injustiçado por alguns dos seus contemporâneos, e de Nagy Lajos, um artista plástico húngaro fugido do nazismo e que transformou São Luís em seu refúgio, dividindo com os que o acolheram conhecimentos reunidos como artista de vanguarda na sua terra. Lembra o icônico professor Rubem Almeida, um dos mais respeitados intelectuais da história recente do Maranhão. Registra sua convivência de altos e baixos com Bandeira Tribuzi, um poeta genial e um dos mais importantes ícones da poesia maranhense. Da mesma maneira como relata a existência e a obra do jornalista, poeta e escritor Viégas Neto, do célebre poeta caxiense Déo Silva, um dos seus parceiros de verso e de farra, do poeta Murilo Ferreira, livre pensador e orador genial, e do poeta e companheiro de odisseias etílicas José Maria Nascimento. Na esteira dos registros dos seus entes de convivência cultural, Nauro Machado coloca no seu panteon personalidades elevadas como os pintores Péricles Rocha, dono de uma obra monumental ainda em andamento, e Maia Ramos, que usou as cores numa perspectiva muito além do comum. E se posiciona ao lado de José Sarney, a quem respeita como intelectual e admira como político, dedicando também largo espaço ao padre, médico e escritor João Mohana, uma das mais emblemáticas personalidades da sua geração, e um registro justo ao poeta e agitador cultural Valdelino Cécio, dentre outros.

Além da cultura poética e do profundo interesse por artes plásticas, Nauro Machado registra em “Província” a sua relação extremada, em todos os aspectos e sentidos, com São Luís, o seu mundo. Na crônica “Velhas ruas”, por exemplo, ele relata suas caminhadas noturnas pelo centro da cidade: “É um prazer supremo, se o julgarmos pela lógica hierarquizante a abrir-se sempre no conhecimento do mais alto – o que nos leva ao maior Bem -, andar depois das sete horas (da noite) pelas ruas de São Luís”. Nas suas contemplações, num beco ou na beira-mar, e nos dados efervescentes da sua memória, o poeta relata em prosa, com roupagem suavemente fantasmagórica, a passagem, dos bondes de São Luís: “Eles vinham descendo pelas ruas do Sol, da Paz, da Praia grande, bimbilhando álacres e soltos como balões coloridos pelas pandorgas da infância (…), e dos seus passageiros sentados com ternos esplêndidos, exibindo o linho ou o tropical domingueiro e sem pompas fúnebres”. E avança para o universo rico e tumultuado dos bares, onde também procurou, ao longo da sua existência, as respostas para interrogações, dores e angústias que atormentam o homem e o poeta.

Na sua prosa, Nauro Machado também navega pelas águas turbulentas da polêmica, como a em que demoliu, um a um, os argumentos da pregação skineana sobre o campo do conhecimento feita pelo jornalista e pensador cartesiano Arimatéia Athayde, que cometeu a imperdoável heresia de dizer que “qualquer um aprende a fazer poesia”. Nesse campo, o poeta teve também de enfrentar, oponentes implacáveis como Carlos Cunha. E provavelmente a mais dura e rica de todas: o duelo ácido, mas genial, sobre a base crítica da poesia moderna, travado com o jovem poeta, jornalista e crítico Roberto Kenard, um dos intelectuais mais densos da sua geração, dentro e além das fronteiras maranhenses. E é pelo viés crítico, às vezes severo, que Nauro Machado registra em “Província” a sua inconformação com “poesia ruim”. Nos altos e baixos da sua convivência com o mundo, Nauro Machado abre a guarda destrincha sua difícil e jamais resolvida relação com a Academia Maranhense de Letras, à qual se candidatou duas vezes – na primeira não foi eleito, e na outra desistiu antes da votação.

No campo estritamente pessoal, Nauro Machado dedica todas as honras à sua família, a começar pela escritora Arlete Nogueira Cruz, esposa, companheira e guardiã da sua obra, e o seu filho, o cineasta Frederico Machado, seus entes mais amados. E não esconde o orgulho que nutre pelos Machado, família que inclui personalidades como o deputado federal Lino Machado e o marechal Hugo da Cunha Machado, que dá nome ao aeroporto de São Luís. Nauro Machado destaca a importância histórica do casarão da família no Largo do Carmo, centro nervoso de São Luís, que foi transformado em QG das oposições durante a célebre Greve de 51, e de onde sua mãe, Maria de Lourdes, sairia para fazer história como a primeira mulher vereadora de São Luís.

Em outro viés cultural, o poeta Nauro Machado revela uma intensa paixão pelo cinema, demonstrando surpreendente conhecimento sobre direção, fotografia, roteiro e, claro, desempenho de elenco. Manifesta visão crítica sobre filmes clássicos e expõe a consciência de que foi essa relação que levou seu filho, Frederico Machado, a enveredar pelo universo cinematográfico, eternizando o pai em surpreendente, chocante e honesto documentário sobre seu “inferno”. Alguns artigos mostram também a relação íntima do poeta com o teatro e com a música, destacando-se o registro sobre o compositor Chico Maranhão, seu amigo. Em outros artigos, Nauro Machado mostra as agruras de um poeta para sobreviver como cidadão.

Publicado em 2012, “Província” é, da primeira à última página, um livro superlativo sob todos os aspectos. O autor é um dos gigantes da poesia de língua portuguesa, a cidade em que se situa é hoje patrimônio cultural da Humanidade, a temática dominante é tida por muitos como a mais nobre da cultura em nossa civilização, e as personalidades retratadas estão entre as mais representativas da história cultural do Maranhão em todos os tempos. E como não poderia deixar de ser, o livro tem seu momento supremo: os seis artigos nos quais Nauro Machado, a partir de uma velha e simbólica fotografia, resgata o 1º Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís, realizado em 1956, e seus personagens. A imagem, feita no salão da Câmara de Vareadores, reúne julgadores, sentados – Vera-Cruz Santana, Emmanoel Silva, Clodoaldo Cardoso, José Burnett, Mata Roma, Casemiro Carvalho e Bandeira Tribuzi – e vencedores, em pé – Nauro Machado (poesia), Bernardo Tajra, Fernando Moreira (teatro), Manoel Lopes (poesia, dividido com Nauro Machado), Lago Burnett (jornalismo), Domingos Vieira Filho (cultura) e Cadmo Silva (pintura). Nos textos, Nauro Machado restaura a importância daquele certame naquele momento, que lhe permitiu publicar “Campo sem base”, o primeiro dos seus 43 livros de poemas. Ao reconstruir aquele momento, Nauro Machado vive a dualidade prosador-poeta, à medida que dedica a cada um dos componentes daquela imagem, “amarelecida pelo tempo”, o afago que só um poeta da sua grandeza poderia dedicar.

Os registros que o compõem tornam “Província, o pó dos pósteros” um livro indispensável para quem quer conhecer Nauro Machado além da fronteira e da magia dos seus milhares de sonetos.

Em Tempo: “Província, o pó dos pósteros” abriga também uma densa e definitiva entrevista com Nauro Machado feita pelo crítico e ensaísta Ricardo Leão, uma entrevista sobre a esposa, companheira e guardiã da sua obra Arlete Nogueira Cruz, e uma conversa com o crítico Franklin de Oliveira, além de outros registros, que se completam com a trajetória do poeta em fotografias. Vale registrar também que o prosador Nauro Machado deixou também os ensaios “Tempo ladeado” (1973), “Erasmo dias e noites (1984), “Moinho e lavras de uma água mental” (1988) e “As esferas lineares” (1996).

São Luís, 12 de Agosto de 2022.

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