Especial: Milton Farias, o músico amador de violão preciso que se tornou “enciclopédia” de MPB

 

Milton Farias e as três joias de cordas que garantem sonoridade perfeita aos seus registros de MPB

Não é preciso pesquisar em profundidade para constatar o que dizem os estudiosos da música mundo a fora: com sua extensão continental e fortes diferenças regionais, o Brasil tem uma das culturas musicais mais ricas e diversificadas do planeta. Tanto que é um desafio para qualquer brasileiro ter, na ponta da língua, peças do cancioneiro das diversas regiões do País, como o samba carioca, as toadas ludovicenses, as modas caipiras paulistas, os ritmos nordestinos, o frevo do Recife, a moda de viola pantaneira, e por aí vai. A genialidade brasileira criou um gigantesco e precioso mosaico musical urbano a partir das influências regionais, dando ao talento e ao tempo as condições para criar o que hoje conhecemos como Música Popular Brasileira, a MPB. Nela estão desde o samba de raiz, a genial e sofisticada bossa nova, o emblemático samba-canção, o precioso choro, o baião, o axé baiano, a moda sertaneja e suas derivações mil. Na era do disco, foram muitas as tentativas de reunir em séries o que havia de melhor da MPB, mas nenhuma chegou sequer perto do acervo produzido por Milton Farias. Atualmente, a internet abriga um acervo monumental de MPB, e nele estão os registros – são mais de 600 vídeos-clipes –, feitos em voz e violão por esse caxiense estudioso e apaixonado por música.

Antes de prosseguir, uma informação essencial: o já sessentão Milton Farias é médico oftalmologista por profissão e músico amador por paixão, que nutre a cada dia da sua existência, e que se traduz numa discoteca de rara qualidade e na companhia de cinco violões – três joias saídas das mãos mágicas de luthiers geniais como Sugiyama, João Screnin e Lineu Bravo, e dois tops de fabricação industrial seriada, um Rozini e um Di Giorgio. Com esses instrumentos, que são cuidados com devoção quase religiosa – suas cordas são trocadas a cada semana para garantir a qualidade sonora -, Milton Farias usa seu tempo livre para estudar com foco e montar a melhor vestimenta para cada música que inclui no acervo, dando a ela embalagem melódica própria e adequada, tornando-a exemplar único da sua pequena, mas rica e genial, enciclopédia MPB. Para chegar a tanto, o antes músico diletante e descompromissado se transformou num estudioso de música curioso e disciplinado.

A criação do acervo foi possível depois que, há pouco mais de cinco anos, quando nos seus exercícios diários para dominar o violão em busca do melhor acompanhamento para clássicos da MPB, foi desafiado por suas filhas a gravar em vídeo e divulgar na internet. Depois de alguma relutância, causada pela prudência, ele topou, fez o primeiro registro,  tomou gosto e se transformou numa referência, tanto no que  diz respeito à seleção das músicas, quanto no que se relaciona com a qualidade do seu acompanhamento.

Milton Farias não é um talento superior das cordas, nem tem tal pretensão. Mas vem aos poucos ganhando qualidade, se tornando um mestre e ganhando o raro status de referência, sendo elogiado por artistas consagrados como as cantoras Maria Betânia e Rosa Passos, esta com a autoridade de quem tem bom desempenho no violão. Para chegar até aqui, foi buscar inspiração no maior gênio do violão na MPB, o revolucionário baiano João Gilberto, que no final dos anos 50 do século passado mudou a maneira de tocar samba, criando a Bossa Nova, e dando assim a maior guinada na MPB até aqui. Inicialmente tímido, o violão de Milton Farias evoluiu muito nos últimos tempos e é hoje nítido em cada corda e dominante na estrutura de cada música, dando às sequências e compassos o acompanhamento certo, sem falta nem excesso. E o faz com a segurança e a precisão dos craques, sem se aventurar em movimentos audaciosos, nem em enfeites desnecessários, perigosos e dispensáveis. O mesmo acontece com a maneira como usa sua voz grave, metálica e de pouca vocação para o canto: respeita a estrutura original da música, com o cuidado de não sair do eixo nem tropeçar em agudos ou graves, passando ao largo de variações ousadas. Suas interpretações são as de Milton Farias, únicas, ímpares.

Nos primeiros registros, a voz se impunha a um violão ainda acanhado, mas isso mudou progressivamente, de modo que hoje o violão parece se impor à voz, exatamente por ser bem executado. E com um detalhe a mais, que fez enorme diferença: nos registros de exemplares da MPB, Milton Farias deixa forte impressão de que, mais do que cantar e dominar o violão, tem uma preocupação quase didática, como um propagador do que há de melhor nos mais diversos nichos e vieses da MPB.

Os registros feitos por Milton Farias já produziram um amplo e rico acervo, resultando numa obra incomum, que está dispersa, nas teias das redes sociais, mas têm a marca inconfundível do autor, cuja obra é original. No painel encontram-se, por exemplo, pedras preciosas como “Chega de saudade” (João Gilberto), “Samba em prelúdio” (Vinícius de Moraes /Toquinho), “Samba de Verão” (Marcos e Paulo Sérgio Vale), “Com açúcar e com afeto” e “Carolina” (Chico Buarque), “Peito vazio” (Cartola), “Lugar comum” (Gilberto Gil/João Donato), “Onde anda você” (Hermano Silva/Vinícius de Moraes), “Valsinha” (Chico Buarque), “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), “Saigon” (Paulo Cartier/Carlão/Paulo Feitosa), “Outra vez” (Isolda), “Lamento Sertanejo” (Dominguinhos/Gilberto Gil), “Aquele Frevo Axé” (César/Caetano Veloso), “A palo seco” (Belchior), “Violão” (Sueli Costa/Paulo César Pinheiro), “Tudo se transformou” (Paulinho da Viola), “Tatuagem” (Rui Guerra/Chico Buarque), “Tudo azul do mar” (Flávio Venturinni/Ronaldo Bastos), “Logo agora” (Jorge Aragão/Jotabê), “Quase fui lhe procurar” (Roberto Carlos), “Cantar” (Godofredo Guedes), “Falsa alegria” (Monarco), “Você e eu” (Carlos Lyra/Vinícius de Moraes), “Louco” (Wilson Batista), “Solidão” (Alceu Valença), “Carinhoso” (Braguinha) e “Dente de ouro” (Josias Sobrinho), entre muitas e muitas outras.

Até onde a Coluna alcançou, não há registro de MPB como o de Milton Farias. Sua paixão pela música – que começou nas serenatas de adolescente nas noites de Caxias, ganhou força nos bares da Lapa quando residente de Medicina no Rio de Janeiro e passou por um longo namoro com jazz e suas musas – parece inesgotável. É a mesma que alimenta pelo violão, aprimorado a cada dia com estudos e exercícios. Essas paixões fizeram dele, mais do que um artista amador, um importante guardião e propagador do que há de melhor na MPB. Seus vídeos-clipes caseiros, feitos sem recursos nem recortes, são aulas sobre nossa música.

São Luís, 26 de Junho de 2021.

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