Existiu uma São Luís que o mundo das luzes apontou como uma Atenas nos trópicos, existiu uma São Luís rebelde, existiu uma São Luís musa de poetas e romancistas, e ainda existe uma São Luís que, aos 411 anos de idade e 1,2 milhão de habitantes, está consagrada como Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade e que ainda guarda um pouco de tudo isso e conserva com obstinação a base da sua cultura popular e o seu viés literário. Nessa linha temporal, existiu uma São Luís cujos filhos foram felizes sem se dar conta disso. Essa São Luís, que nasceu nos anos 40 e se desfez nos anos 80 do século passado, período em que o Rádio viveu o seu apogeu, tempo em que a democracia renascida em 45, foi novamente sufocada em 64, quando a televisão desembarcou com força avassaladora e mudou costumes, prenunciando as mudanças revolucionárias que seriam trazidas pelo século XXI, essa cidade, com seu teatro, seus bares, seus cabarés, sua cultura e seus personagens, é mostrada, sem maquiagem e apaixonadamente, em “Éramos felizes e não sabíamos” , o magistral registro em 48 crônicas do jornalista, poeta, romancista e político Bernardo Coelho de Almeida, publicado em 1989.
Os textos são verdadeiros memoriais, quase autobiográficos, que trazem o condão de mostrar uma cidade viva, o seu cotidiano, os seus limites, as suas contradições, realidade pura, sem maniqueísmo. A crônica de abertura, “Um profeta em sua terra” é um verdadeiro mosaico da São Luís dos anos 50/60, mostrada em detalhes por Bernardo de Almeida. Ali estão as ruas principais, as casas comerciais, os bares, ainda os velhos bondes, os poucos “carros de praça” – sinônimos de status -, os cafés, os pontos de encontro, as escolas. Com riqueza de informação, o cronista mostra surpreendente intimidade com a cidade, dando nome às coisas e às pessoas, sugerindo que cada uma tem uma bela história. E com a honestidade de só ter contado o que viu e viveu.
Movido pela ideia de remontar em detalhes a cidade feliz, Bernardo de Almeida, que nela desembarcou aos cinco anos, vindo da longínqua São Bernardo para estudar no Seminário Santo Antônio e se ordenar padre, rascunha, à sua maneira, a origem da felicidade que ele próprio vivenciou integralmente. Naquele tempo, São Luís tinha cinco fábricas de tecido funcionando a todo vapor – Santa Isabel, Cânhamo, Rio-Anil, Santa Amélia e Camboa –, “que nos acordavam ao alvorecer com o silvo dos seus longos apitos (e) davam guarida a milhares de operários saudáveis e felizes”, e era cortada por cinco linhas de bonde. E segue mostrando a pujança do comércio da Praia Grande, onde duas dezenas de poderosas firmas – Martins & Irmãos, Chames Aboud, Cunha Santos, Gaspar Marques, entre outras – abasteciam a cidade e todo o Maranhão alcançável por terra e mar. Mais para o centro, já na Rua Grande, estavam as lojas sofisticadas, as livrarias, os bazares, os armarinhos, as alfaiatarias, as sapatarias que davam a São Luís, por ele definida como “nosso pequeno mundo singelo e tranquilo”, um traço cosmopolita, acentuado com a passagem dos soldados norte-americanos a caminho do front, apesar do seu isolamento do resto do País.
Boêmio incorrigível e avesso a reuniões sociais, Bernardo de Almeida recorda a São Luís dos bares que frequentou e que, ao busca-los na memória, em 1988 reclama que não eram mais como antigamente. Fala de cada um deles com detalhes e profundidade, como se lhes conhecesse a alma. Registra que o famoso bar do Hotel Central tinha suas mesas animadas e bem atendidas pelo garçom Fonseca e pelo português Oliveira Maia. Fala do Moto Bar, “do Serafim”, que tinha o “melhor tira-gosto”, e logo ao lado o Jurandeiro, de Manoel Santos. A rota boêmia passava pelo Café Paulista, dos irmãos Nicolau, na Rua da Paz. Os boêmios ocupavam também o bar Para Todos, onde eram servidos em pé, e o Bar do Nasciso, um português que servia um “camarão seco fantástico”. Mas o grande ícone foi o Bar do Castro, do generoso espanhol Leôncio Castro, frequentado por boêmios e intelectuais, onde se reunia a nata dos poetas e escritores, a exemplo do grupo que fundou a revista Legendas, idealizada e comandada pelo próprio Bernardo de Almeida: o poeta José Chagas, o jornalista Reginaldo Teles, o pintor Antônio Almeida, o poeta Déo Silva, o cronista Ubiratan Teixeira e o jornalista Benito Neiva. Ali também pontificaram o célebre orador Murilo Ferreira, o poeta-declamador-polemista Carlos Cunha e o articulista e provocador Erasmo Dias.
Bernardo de Almeida escreve que essa São Luís, com pouco mais de 70 mil habitantes, foi também uma cidade onde aos domingos as famílias passeavam na Praça Benedito Leite embaladas pelos dobrados e valsas de uma bandinha instalada no coreto. Mas também foi a São Luís cuja vida noturna acontecia nos cabarés comandados pelas madames Honorina, Ziloca, Maroca, Lolita, Mercedes e Lavínia, frequentado por políticos, empresários, profissionais liberais e jovens, que se divertiam ao som de orquestras. O Carnaval daquela São Luís, sem escolas de samba, era “singelo, comunicativo, alegre e generoso”, com animados corsos, homens vestidos de mulher e vice-versa, fofões, e era animado pelos famosos bailes de máscara do Moisés, do Walmir Reis, do Mundiquinho, do Dutra e do Edson nos quais as mulheres eram obrigadas a usar máscaras para não serem reconhecidas. Esses bailes, que marcaram época, foram sumariamente proibidos pelo então prefeito Epitácio Cafeteira, que também desfigurou aquela cidade com a retirada dos bondes.
Aquela São Luís tinha fama de abrigar boas escolas, como o Liceu Maranhense, então considerado um templo da educação, o Colégio Santa Teresa, o Maristas, o Ateneu, o Centro Caixeiral, a Escola Técnica, o Colégio São Luís, o Rosa Castro e a Escola Normal. Seus alunos eram brindados com os ensinamentos de mestres como Mata Roma, Rubem Almeida, Zuleide Bogeia, Luiz Rego, Arimateia Cisne, Zoé Cerveira, Lilah Lisboa, Nascimento Morais, Hipátia Damasceno, entre outros luminares da educação formal. E contava com a medicina “mágica e humanitária” de Carlos Macieira e Odorico Amaral de Matos, entre outras figuras importantes das mais diversas áreas de atuação na cidade.
Era uma cidade intensa e pujante e que ganhou novas luzes com o retorno de Bandeira Tribuzi, após concluir seus estudos em Coimbra, e trazer na bagagem os novos horizontes poéticos abertos com a obra de Fernando Pessoa, uma nova visão de administração pública baseada no planejamento, informações técnicas em grande medida contidas nos ideais socialistas pregados por Karl Marx, os quais cultivou por toda a vida, sem retrocesso nem remorso, como líder de pelo menos três gerações de poetas, e que, da sua obra imortalizada, foi destacada a música “Louvação a São Luís”, adotada como Hino Oficial da Capital do Maranhão.
O cronista Bernardo de Almeida registra, com muito orgulho, a sua rica trajetória de radialista que teve papel central e decisivo na animação daquele “mundo singelo” pelas ondas de Rádio, que produziram naquele momento a Era de Ouro do Rádio no Maranhão, sendo ele o todo-poderoso diretor artístico da Rádio Difusora AM 680, a mais completa e influente emissora do estado. Seu relato é rico de situações e mostra que naquele tempo uma emissora de Rádio era uma grande empresa segmentada – programas de estúdio, programas de auditório, rádio-jornalismo intenso, departamento de esporte, equipe de repórteres, rádio-escuta, cast de cantores e de músicos e de locutores de radionovela – e que influenciava, às vezes decisivamente, qualquer situação, principalmente as de viés político. O ponto alto era o editorial Difusora Opina, ao meio dia, por ele redigido diariamente, e por meio do qual a emissora se posicionava, o que fazia com que o governador e o motorista de táxi parassem para ouvi-lo. A audiência e a influência da emissora foram consagradas com a versão da Guerra dos Mundos, de Orson Welles, produzida pelo radialista Sérgio Brito com a sonoplastia do célebre Parafuso, que quase levou a cidade à loucura com a suposta invasão de marcianos. E relata o começo do fim da Era de Ouro do Rádio quando, por ironia do destino, ele próprio, que foi um dos seus ícones, apareceu na primeira transmissão da TV Difusora, em 1963. A Difusora AM resistiu, se manteve no topo por alguns anos, mas quedou.
Homem cortês, que tinha talento excepcional para se relacionar e construir amizades, apesar das dificuldades que lhe eram impostas pela condição de político – foi deputado estadual quatro vezes, eleito sempre pela força da sua família em São Bernardo e região -, Bernardo de Almeida enriquece “Éramos felizes e não sabíamos” com crônicas em que traduz, por sua ótica singular, personalidades que tiveram participação importante e às vezes decisiva na vida de São Luís e do Maranhão, como fez com Bandeira Tribuzi no grandioso registro “O profeta em sua terra”, que abre o livro.
A crônica “Éramos felizes e não sabíamos” é um relato primoroso e completo da sua juventude no internato do Colégio Maristas, depois de deixar o seminário por falta de vocação, tendo sobrado apenas um fiel católico, conservador e temente a Deus. Nessa seleção rigorosa, ele destaca a figura incomum e respeitada do senador Henrique de la Rocque, a quem dedicou grande amizade e define como “o melhor homem do mundo”. A crônica “Brilha uma estrela em seu destino” é dedicada a José Sarney, de quem sempre foi adversário político – militava no MDB e Sarney na Arena e sucedâneos -, mas sempre alimentando uma brecha para manter uma amizade por admiração e afinidade intelectual, tanto que corrige algumas injustiças contra o ex-presidente da República. Nas linhas de “Os enormes sapatos lhe cobriam o rosto fúnebre”, o cronista exalta o escritor, político e polemista Erasmo Dias, destacando seus talentos e sua incontrolável disposição para o confronto. O poeta José Chagas foi seu amigo desde que principiou no plano literário e no Rádio, e com ele somou esforços para divulgar a literatura, sendo um dos seus próximos por toda a vida, tanto que editou seu primeiro livro, “Canção da Expectativa”. José Chagas é a personalidade da crônica “Como admirar um grande poeta”.
No rico registro de personalidades, Bernardo Almeida dedica uma ampla e densa crônica ao escritor e pesquisador Jomar Moraes, com quem manteve relação próxima em todos os momentos importantes, daí o título “Como alcançar a imortalidade”. E prossegue destacando o sacerdócio gramatical de Amaral Raposo, o mecenato do empresário Eduardo Aboud, a genialidade humilde e humana do jornalista e poeta Odylo Costa, filho, a incrível e bem sucedida trajetória do jornalista, escritor, poeta e magistrado superior Edson Vidigal – “o menino do Beco do Urubu”, e o coração grande do médico e governador Jorge Dino. Registra a paixão pelo cinema e mostra que essa arte foi um dos pilares da cultura espantosa de Fernando Moreira, um dos gênios literários do seu tempo, e destaca em “A grande mulher maranhense”, a dignidade da médica Maria Aragão – militante de esquerda que enfrentou a ditadura como poucos e que se tornou uma referência. E enxerga o padre, médico e militante católico João Mohana como um quase santo, “um ser especial, inteiramente voltado para amar seus semelhantes em adoração ao Senhor”.
Bernardo de Almeida registra alguns momentos da sua vida como político em “Nem tudo está perdido”, mostra em “Música, divina música” toda a força da sua paixão pela música, explicada em parte pela sua longa atuação como diretor artístico da Rádio Difusora, o que dá a “Éramos felizes e não sabíamos” um retrato do mundo feliz no qual viveu até se dar conta de que ele não mais existia quando, infelizmente, o Rádio perdeu força e o prestígio, a TV impôs uma nova realidade, os bares deixaram de ser redutos da boêmia autêntica e a violência das ruas começou a mostrar sua cara em São Luís.
Além de “Éramos felizes e não sabíamos”, Bernardo de Almeida escreveu “Luz! Mais luz!” e “A gênese do azul” (poesia), “Galeria” (crônicas), “A última promessa” (romance) e “O Bequimão” (romance). Pouco antes de morrer, em 1997, aos 69, anos, reclamava que o trabalho e a boêmia não o deixaram escrever o quanto que deveria e queria ter escrito.
São Luís, 8 de Setembro de 2023.