Há 70 anos, exatamente no início da segunda metade do século XX, quando mundo começava a curar as feridas da Segunda Grande Guerra e o Brasil dava o passo decisivo para voltar de vez à normalidade democrática, o resultado da eleição para o Governo do Estado, realizada no bojo das eleições gerais de Outubro de 1950, com a vitória do empresário caxiense Eugênio Barros (PST), candidato escolhido e apoiado pelo então todo-poderoso senador Victorino Freire, sobre o empresário ludovicense Saturnino Bello (PSP), candidato das Oposições Coligadas (PSP/UDN/PSD/PR/PL/PTB), conflagrou o Maranhão de maneira dramática, mergulhando os maranhenses, principalmente os da Ilha de Upaon Açu, num caldeirão de tensões políticas e sociais. Os números apresentados pela Justiça Eleitoral foram contestados com denúncias de fraude, feitas pelas Oposições Coligadas, e o embate das duas correntes desencadeou uma crise política e institucional de proporções gigantescas que, durante nove meses, transformou São Luís numa praça de guerra. Nesse período, o Maranhão teve um governador eleito, dois governadores interinos, um interino que não chegou a assumir, e por pouco não caiu nas mãos de um interventor federal, que seria um general. Em meio à crise política, a Capital foi sacudida por agitações de massa, tiroteios, assassinatos, incêndios criminosos em bairros pobres, e o interior participou com um levante “guerrilheiro” em São João dos Patos. Alimentada por jornais partidários locais, a crise maranhense, que parou a vida social e econômica da Ilha, se tornou item prioritário na agenda política do presidente Getúlio Vargas – que voltara ao poder pelo voto direto –, foi acompanhada pelos grandes jornais e revistas nacionais, e ganhou repercussão internacional. Ocorrida quando o Brasil consolidava a redemocratização, a longa sequência de episódios entrou para a História como A Greve de 51, também batizada de “Revolução do Maranhão”.
O mais amplo registro factual daquele momento ímpar da História do Maranhão está cravado nas páginas de “A Greve de 51”, do jornalista e pesquisador Benedito Buzar, tendo a primeira edição lançada nos anos 70, e a segunda, em 2001, sob o título “Os 50 Anos da Greve de 51”, essa amplamente enriquecida com acréscimos informativos – especialmente as entrevistas de Neiva Moreira, líder oposicionista, e de Evandro Barros, filho e assessor de Eugênio Barros – e ampliação inestimável da memória fotográfica daqueles dias de guerra na Capital do Maranhão. Com sólida formação política – foi eleito deputado estadual com pouco mais de 20 anos e cassado em 68 –, e dono de um talento excepcional para garimpar fatos políticos do Maranhão no século XX, além de conversar com protagonistas, Benedito Buzar montou um rico roteiro dos acontecimentos de 51, registro único, que serve de base para o pesquisador que desejar ir além no resgate daqueles dias históricos.
Garimpado cuidadosamente nos jornais da época – principalmente “Jornal do Povo”, “Diário Popular” e “O Combate” ostensivamente posicionados na guerra política -, o documento produzido por Benedito Buzar reúne uma sequência impressionante dos acontecimentos, da movimentação dos seus atores e dos desdobramentos dos embates. E informa que a origem dos fatos explosivos estava exatamente nos dois cânceres da política, o caciquismo despótico e a fraude eleitoral, que naquele momento eram as marcas mais fortes da sempre agitada vida política maranhense, com poder de manipular as instituições.
Com grande riqueza factual e linguagem jornalística direta e precisa, e longe do academicismo pretencioso, “A Greve de 51” relata que após domínio absoluto no Maranhão no Governo Eurico Dutra, o vitorinismo pressentiu derrota nas eleições de 1950, quando as Oposições Coligadas, que tinham nos seus quadros figuras destacadas como Neiva Moreira, Clodomir Milet, Clodomir Cardoso, Nunes Freire, Lino Machado, Djalma Marques, Fernando Viana e Henrique La Rocque, entre muitos outros, que apoiavam a candidatura de Getúlio Vargas, lançaram Saturnino Bello candidato à sucessão do vitorinista Sebastião Archer. Ladino e manipulador como poucos, Victorino Freire – que contava com Renato Archer, César Aboud, Alexandre Costa, Ivar Saldanha e Cid Carvalho, entre muitos outros – encontrou em Eugênio Barros, então prefeito de Caxias e conhecido pela sua seriedade e altivez, o nome certo para enfrentar o oposicionista. As urnas deram vitória a Eugênio Barros, e, como era esperado, o resultado foi contestado com gravíssimas denúncias de fraude. Em janeiro de 51, em meio à confusão, Saturnino Bello morreu. A Justiça Eleitoral empossou Eugênio Barros. Aguerridas, as lideranças das Oposições Coligadas contestaram a posse e organizaram e fomentaram um gigantesco movimento popular, que fincou estacas no Largo do Carmo, onde milhares, entre trabalhadores e operários fabris convocados por sindicatos controlados por líderes políticos, se reuniram em protesto pelos meses seguintes. A residência da ativa vereadora Maria de Lourdes Machado, no Largo do Carmo, se tornou o QG onde os chefes oposicionistas se reuniam e tomavam decisões e as comunicavam no ato à massa mobilizada no coração na cidade.
As páginas de “A Greve de 51” mostram a reação popular, que logo se transformou num movimento grevista que parou a cidade por meses, criou seguidas situações de impasse, desencadeando a esdrúxula sucessão de três governadores interinos: dias depois de empossado, mas com a eleição contestada, Eugênio Barros foi convencido a se afastar até que a Justiça Eleitoral desse a palavra final. Como a Assembleia Legislativa ainda não tinha sido instalada, e não tinha presidente, o segundo na linha sucessória, ele passou o cargo interinamente ao presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Trayahú Moreira, que logo em seguida seria “deposto” com a eleição do presidente da Assembleia Legislativa, deputado César Aboud, que, assumiu o Governo – isso depois da sufocação de uma tentativa do desembargador Nelson Jansen de assumir o Governo do Estado em substituição a Trayahú Moreira. Em meio a essa guerra pelo poder, o Maranhão quase caiu nas mãos do general Edgardino Pinta, comandante da 10ª Região Militar, que desembarcou em São Luís como observador a mando do Palácio do Catete, onde o presidente Getúlio Vargas resistiu a pressões das Oposições Coligadas para decretar intervenção no Estado, medida que certamente prejudicaria a sua nova condição de democrata. Essa guerra política durou de Janeiro a Setembro, quando finalmente a Justiça Eleitoral confirmou a eleição de Eugênio Barros, tendo como vice o jovem tenente da Marinha Renato Archer.
O precioso livro de Benedito Buzar relata em detalhes que, preocupado, o presidente Getúlio Vargas mandou a São Luís o ministro Negrão de Lima que, com habilidade e muita diplomacia, ouviu lideranças dos dois lados e retornou ao Rio de Janeiro levando ao chefe da Nação a recomendação de não decretar intervenção, como queriam as Oposições Coligadas na esperança de anular o pleito.
Com a mesma precisão com que resgatou a crise política, sua evolução e seu desfecho, Benedito Buzar enriqueceu “A Greve de 51” com o registro do simultâneo movimento popular fomentado pela banda oposicionista. Trabalhadores, pequenos comerciantes, estudantes e desempregados formaram uma massa densa e ativa, que se manteve por meses. Ao mesmo tempo, Polícia Militar e tropas federais faziam o controle dos movimentos, estabelecendo o famoso Paralelo 38, em frente ao Hotel Central, para evitar a invasão do Palácio dos Leões. Houve momentos críticos, com alguns confrontos armados, provocados por capangas de Victorino Freire e militantes oposicionistas, com as forças policiais ao meio. Dois casos se destacaram. Num deles, um ônibus ironicamente lotado de vitorinistas vindo de Rosário, avançou na área, ultrapassando a linha fronteiriça do “Paralelo 38” e foi cravejado de balas pela Polícia, resultando na morte do monsenhor Joaquim Dourado e no ferimento do jovem político Ivar Saldanha, que viria a ser prefeito de São Luís e governador do Maranhão. Em outro, os criminosos incêndios de casas de palha em bairros populares, que durante semanas causaram revolta, desespero e danos a milhares de famílias. Os vitorinistas acusavam a oposição de estar por trás do crime, apontando diretamente o jornalista Neiva Moreira, apelidado de “Caramuru”, de ser o mentor da armação incendiária, com o objetivo de incriminar os governistas – Neiva Moreira sempre negou. O livro revela que a médica comunista Maria Aragão também foi taxada de incendiária.
Em meio às marchas e contramarchas da crise política e seus ecos traumáticos na vida de São Luís, “A Greve de 51” faz um registro espetacular: um levante em São João dos Patos, liderado por um tal “general” Raimundo Bastos, um caudilho do sertão que resolvera mudar o curso da História do Maranhão liderando uma malta de capangas. Foi enquadrado sem guerra por um destacamento da PM comandado pelo tenente Eurípedes Bezerra. O resgate de Benedito Buzar documenta que naquele período traumático, entre o fomento explosivo das forças oposicionistas e a pressão do poder governista, São Luís mergulhou numa greve prolongada, sofreu as durezas do desabastecimento e as muitas consequências econômicas e sociais geradas pelas manifestações.
“A Greve de 51” mostra que o desfecho da crise começou em Setembro, quando o TSE confirmou a eleição da chapa vitorinista Eugênio Barros/Renato Archer. O governador eleito, que tomara posse em Janeiro e fora afastado dias depois, encontrava-se no Rio de Janeiro e decidiu retornar ao Maranhão, apesar do clima de tensão. Mostrou-se decidido a encarar de frente a situação, sem demonstrar preocupação com os riscos, dizendo-se disposto a pegar em armas se atacado. De volta, Eugênio Barros sitiou-se no Palácio dos Leões por três semanas, período em que confirmou sua fibra sertaneja e, ao mesmo tempo, sua competência política. Com firmeza e habilidade, conseguiu desarmar o clima de tensões, passou confiança e credibilidade a líderes oposicionistas. Assumindo as rédeas na situação, deixou o Palácio e foi às ruas, encarou a multidão, ganhou respeito, minou as forças adversárias e consolidou a vitória do vitorinismo e a derrota das Oposições Coligadas.
Sem pretensões analíticas e rigorosamente factual, como uma grande reportagem histórica, “A Greve de 51”, em especial sua segunda versão rebatizada de “Os 50 Anos da Greve de 51” são chaves para a compreensão do que aconteceu no Maranhão da redemocratização de 1945 para cá. Entre outros motivos, porque informa a origem de personalidades que pontificaram no cenário político estadual e nacional, como o gigante político e jornalístico Neiva Moreira, que teria o mandato de deputado federal cassado pela ditadura e que nos anos 80 fundaria o PDT ao lado de Leonel Brizola, e Renato Archer, que disputaria o Governo do Estado em 1982 com Luís Rocha, mas que, ao lado de Tancredo Neves seria personagem importante no desmonte da ditadura militar, participando da instalação da Nova República como ministro de Ciência e Tecnologia do Governo José Sarney, para citar apenas dois exemplos.
Ao escrever “A Greve de 51”, Benedito Buzar presenteou a memória brasileira com um marco definitivo da História recente dos maranhenses, o que o torna leitura obrigatória e indispensável para quem aspira compreender o Maranhão político de agora.
São Luís, 14 de Março de 2021.
Interessante a história do nosso estado, nasci e moro em Imperatriz, meu pai é de São Luis e sempre me contava a história desta greve, hoje lendo esta matéria vim a entender com precisão estes fatos históricos. Valeu.