ESPECIAL: “Contradições”, o genial e arrebatador acerto de contas de Chico Maranhão com São Luís, o mundo, a arte e ele próprio

 

Em “Contradições” e seus codinomes Chico Maranhão canta o que pensa em versos fortes e magistrais

Provavelmente por não conhecerem bem o autor,  seus talentos e o universo que o originou, e por não terem desvendado o tesouro poético-musical que avaliaram, alguns críticos reconheceram em “Mandioca Pinga Sushi” uma resposta ao vaiado discurso de Caetano Veloso no Festival Internacional da Canção de 1968, enquanto outros elogiaram a reunião de elementos da cultura maranhense, lembraram sua participação naquele festival com o frevo “Gabriela” e outros dados isolados da sua obra e do seu perfil como artista. Nenhum, porém, alcançou o âmago, a beleza musical, a força poética e o sentido maior de “Contradições” ou “Contradiz sons” ou ainda “Contradiço és”, a mais recente e monumental obra musical de Chico Maranhão, um dos gigantes mais geniais e produtivos da Música Popular Maranhense (MPM) e, sem favor, da Música Popular Brasileira (MPB). Álbum duplo com 22 faixas, lançado em 2015, “Contradições” é muito mais do que a reunião de duas dezenas de joias musicais da lavra do artista, um conjunto cuidadosamente sequenciado que forma uma obra densa, ímpar e superior, que espanta e choca no primeiro momento, mas cresce e se impõe a cada audição.

O Disco 1 reúne 11 faixas: “Mandioca Pinga Sushi”, “Os Telhados de São Luís”, “Sobrados e Trapiches”, “Sobrado”, “Roça Brasil”, “Hino do Vira Vila”, “Ponto de Fuga”, “Meu Vovô”, “Bom Dia, Dia”, “Manguezal do Sal” e “A Vida é uma Festa”. O Disco 2, também com 11 faixas, guarda: “Filho d`uma Égua”, “Sós”, “Stradivarius Malúdico”, “Prostituta”, “Doce de Espécie”, “Quando Baixa o Crepúsculo”, “Contador de Lágrimas”, “Pé de Vento”, “Gritos”, “Passando a Vida” e “Sonhar”.

Em “Contradições”, Chico Maranhão faz um balanço denso e alentado da sua existência como artista, uma espécie de catarse, um ajuste de contas com a obra, com a arte, com a vida, com o mundo, e com ele próprio como poeta e compositor. Mais do que isso, o álbum revela suprema felicidade e profunda angústia, altos e baixos da sua relação com São Luís, seu berço e musa maior, e também com o resto do mundo, em especial São Paulo, onde se fez e se tornou arquiteto e compositor. Cada peça é obra com beleza e recado próprios, podendo existir só, isolada, exclusiva. Ao mesmo tempo, todas se interligam, como que num grande rosário em que cada conta tem seu peso, compondo, juntas no fio, a crônica nua e crua da trajetória e da produção de um poeta que faz música, portanto um artista de patamar muito elevado. Essa interligação dá a “Contradições” a ideia de roteiro e a composição de um grande musical, com traços fortemente operísticos. As 22 faixas de “Contradições” formam uma obra madura, arrebatadora, incomparável, diferenciada, que instiga, choca, provoca e desafia. E com um detalhe que o torna único: Chico Maranhão canta solto, dando a cada música uma interpretação que julgou correta, às vezes saindo do tom, às vezes atravessando o compasso, parecendo provocação.

No primeiro disco, que abre com o elevado e abusado revide a Caetano Veloso com “Mandioca Pinga Sushi”, o poeta, o cronista e o músico Chico Maranhão vão longe numa relação intensa e costurada com a sintonia possível, sem muitas concessões, como na tríade ludovicense formada pela canção “Os Telhados de São Luís”, pela balada “Sobrados e Trapiches” e o samba-choro “Sobrado”. Na primeira, o arquiteto que se identifica com a desconcertante genialidade de Gaudi, leva o poeta a transcender apontando corcovas, veludo, escuro, dúvidas, fome, lama, urubu, pólvora, candura e amor nos imensos, centenários e intrigantes telhados da velha cidade. Na segunda, o poeta e o arquiteto invocam o cronista e mostram os sobrados e trapiches de São Luís como o centro de um mundo sem igual, desenhando com versos fortes a estrutura, a natureza, a função, a “relação viril” e a história desses dois símbolos do Maranhão rico, que, com “ares de soberania”, abrigavam ao mesmo tempo o burguês e o escravo, suas riquezas e suas dores. A tríade se completa com “Sobrado”, um dos momentos supremos do álbum, no qual o poeta tenta reanimar um “sobrado vivo, caído na rua”, que carrega a lua “como um estivador”. Num monólogo que mistura ternura e provocação, instiga-o a atirar-se no mundo em busca da sua tez, ouvindo antes os astros e os românticos, alertando-o, porém, para não se entregar à desventura carregando o tempo, a lua, “Carnaval de rua sem rainha, mulata, cachaça, freguês”, e a mudar o compasso dessa arquitetura dando “uma punga de coreiro” e jogando “a bunda no terreiro”. E depois de propor que se encontrem em tempos mais felizes, pede à virgem dos Remédios que “jogue agora todos os remédios” sobre o sobrado.

Na sequência do primeiro disco, Chico Maranhão enternece com “Roça Brasil”, inspirada em moda de viola pantaneira, que fala do amor numa casinha da roça, sem “nada na porta do fundo e nada no fundo da porta”, provavelmente referindo-se ao tempo em que se isolou em um sítio na Maioba. Mostra um pouco sua paixão por São Paulo com o samba “Hino do Vira Vila”, lembrando o time de futebol de uma turma de um bar. Em seguida, Chico surpreende regravando o clássico samba arrastado “Ponto de Fuga”, uma das joias do disco “Lances de Agora”, repaginando-o com um arranjo duro, soturno, nada parecido com a leveza contagiante da antiga gravação. Recorre à ternura comovente com o samba “Meu Vovô”, “um anjo bom que Deus me deu, um menino como eu”. Na nona faixa, o samba-canção “Bom dia, Dia”, uma ode à luz do dia sob a qual o poeta diz sentir-se um rei, e ao contrário das noites vazias que lhe lembram morte, afirma que se fosse um deus de verdade faria “a humanidade humana outra vez”.

Outro momento de força do primeiro disco está na modinha, “Manguezal de Sal”. Desdobramento do poema “Mangue”, no qual o próprio Chico Maranhão celebra o mangue como “um mestre” e sua importância como fonte de vida nas reentrâncias do litoral maranhense, e saúda o manguezal cujas raízes “urinam gotas de vitaminas na lama crua das ilhas, onde o sururu habita e o caranguejo germina”, lembrando que “o sol que te ilumina é o sal que nos anima, sal de nossa vida”. E anuncia promessa para Santa Luzia “abrir os olhos do mundo pro mangal de nossos dias”. Na faixa, o poema “Mangue” é declamado em tom e ênfase certos pelo também poeta Celso Borges. Chico Maranhão fecha o primeiro disco com a trova “A vida é uma festa”, na qual casa perfeitamente festa, poesia e felicidade. Com intensidade surpreendente, o poema cantado abriga 28 vezes a palavra felicidade e 23 vezes a palavra poesia, cantadas com a força de quem fecha um primeiro ato.

Com carga dramática muito maior do que as do primeiro, as faixas do segundo disco dão a régua e o compasso do acerto de contas de Chico Maranhão com ele próprio, com a vida, com a solidão e com o mundo. São músicas que ganham ares supremos nos poemas musicados “Sós” e “Quando baixa o crepúsculo”, na toada “Gritos”, na saga cantada “Passando a vida” e no gran finale “Sonhar”. O disco é aberto com o samba “Filho d`uma Égua”, uma dura e mau humorada bronca do compositor na rapinagem musical feita por espertalhões e plagiadores do meio, que surrupiam obras de poetas pobres, e que por isso não merecem consideração. Avança com a aparente peça de musical infantil “Stradivarius Malúdico”, que sugere uma alentada e irônica crítica ao mundo da música e na relação dos instrumentos. Na moda de viola pantaneira “Cantador de Lágrimas”, Chico Maranhão relata a dor da sua viola que, atingida pela luz negra, desilusão do amor, não quer mais cantar, mas não descola “o seu peito do meu peito”, tornando-o um cantador de lágrimas. No denso balanço das suas relações, Chico Maranhão faz uma inebriada declaração de amor em “Doce de Espécie”, cantando o amor que o procura numa tarde escura, o algema como tema de um grande poema, o conquista pondo à vista um sentimentalista, o enobrece quando despe suas vestes, como um doce de espécie dessa e de outra espécie. Na faixa “Prostituta”, Chico Maranhão vai fundo no drama de uma dama que perdeu um amor, e por isso desabou, depois de chorar “mais que um fado”, e que sem ilusões desce a Rua do Desterro, convencida de que só ela amou. Canta em “Pé de Vento” os estragos de uma relação afetada por um pé de vento que levou para longe um boizinho que fizera para o seu amor, transformando-o em pedaços de versos. E na toada “Gritos” dá um forte brado de protesto contra as mudanças que desvirtuaram, distorceram e transformaram o Bumba-Boi, de modo que nem Pai Francisco nem Pai Euclídes “conseguem enxergá-lo mais”, e clama, enfático: “Quero meu boi no terreiro troando toada de pique”.

Chico Maranhão completa o seu monumental balanço catártico com quatro poemas musicados, que são ao mesmo tempo arrebatadores e avassaladores. Em “Sós”, o poeta, num diálogo com as estrelas, faz sua catarse nua e crua, revelando sua suprema solidão, suas esperanças, seus caminhos “às vezes tragédia”, mas sempre semeando toadas, compreendendo que a vida “é metamorfose que se realiza”, ele próprio segue internado “nas luzes do sol da poesia”, talvez mais contente ou mais consciente do que sempre foi, tendo talvez o amor como o único dos sóis. Na única parceria que faz no disco, Chico Maranhão canta o denso, trágico e demolidor poema sobre as noites de São Luís, “Quando baixa o crepúsculo”, do poeta maior Nauro Machado, dando aos seus versos superiores a leveza que as duras palavras escondem quando apenas declamado. A homenagem a Nauro Machado reforça uma identidade já registrada na genial canção “Velho amigo poeta”, do disco “Lances de agora”.

O momento maior de “Contradições” é a canção de vários movimentos “Passando a Vida” em que, com mais de 600 palavras cantadas ao longo de 12 minutos, e embaladas pelas notas graves de um piano, pela marcação de um violão e pelos rasgos estridentes de uma guitarra, Chico Maranhão relata, sua saga da Baía de Cumã para São Paulo e vice-versa, em que identifica duas “realidades irmãs, filhas do mesmo salmo”. Fazendo ponto e contraponto entre Cumã e São Paulo, Chico Maranhão é o cronista auxiliado pelo poeta e embalado pelo músico para compor, numa espécie de rapsódia, um registro definitivo da sua trajetória, situando seus passos em fatos históricos, lembrando “um monte de gente” nos embates políticos, nos confrontos de pensamentos, nas diferenças ideológicas, nos festivais, na MPB “e seus desafios”, como também seus suplícios, martírios, glórias e vitórias, de mentes, de medo. Registra marcas dos anos 60, como a peça Morte e Vida Severina, baseada no poema de João Cabral de Melo Neto – da qual participou tocando violão -, e Geraldo Vandré, o célebre autor de “Caminhando”, “construindo o seu perfil”. E fecha a apoteose citando a “navalha aberta duma nova história, certamente certa, certa e provisória, e que ficará muito mais certa depois que olhada como consciência histórica”, e lembrando a (Dona) Teté que se trata da consciência histórica da vida. E chega ao gran finale com “Sonhar”, no que parece ser um diálogo com a morte, no qual, do alto da sua obra monumental, reivindica a Deus o direito de continuar sonhando, num refrão em que o verbo sonhar é pronunciado 37 vezes.

“Contradições” é, em resumo, uma obra ímpar, realizada com força, paixão e esmero, mas sem o objetivo puro e simples de agradar. Não há registro conhecido de algo parecido na MPB, o que faz do acerto de contas de Chico Maranhão uma obra para ser ouvida, garimpada, refletida, como um livro de poemas.

“Contradições” é musicalmente superior, com vasta e variada riqueza melódica e com arranjo adequado e sofisticado para cada faixa. Sem metais – apenas uma flauta discreta soprada por Sávio Araújo em duas faixas -, a embalagem melódica tem a supremacia sofisticada do violão de 7 cordas, da viola e do cavaquinho de Luiz Júnior, e do violão escolado do próprio Chico Maranhão. Outra base do álbum é o piano de Carlos Parná (sete  faixas), e os de Henrique Duailibe (uma faixa) e de Murilo Rego (que sustenta os 12 minutos do grave e denso arranjo de “Passando a Vida”). Rui Mário e Zé Américo dão os seus shows de sempre nos seus acordeons, enquanto Jeisiel Bivis contempla com um espetáculo à parte no arranjo para teclado de “Stradivarius Malúdico”. Pouco exigida no conjunto da obra, a percussão de Wanderson Silva é precisa e competente quando atua, assim como o baixo de João Paulo. O coro formado por Edith Matos, Priscila Aguiar, Chico Saldanha e Luiz Júnior dá forte sustentação a várias faixas. Autor dos arranjos, o violonista Luiz Júnior se revela um músico maior e maduro ao colocar sua sensibilidade musical nas faixas de “Contradições”, tornando-o um álbum diferenciado, único.

São Luís, 06 de Fevereiro de 2021.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *